segunda-feira, 8 de janeiro de 2018

O vício do diagnóstico e o game da OMS

Marcelo Silva de Souza Ribeiro
Prof. da Universidade Federal do Vale do São Francisco - Univasf




Recentemente os jornais televisivos e escritos, blogs, rádios e outras mídias anunciaram a já esperada decisão da Organização Mundial de Saúde (OMS) em incluir o transtorno por videogame como doença em 2018, na próxima edição da Classificação Internacional de Doenças (CID-11). Será chamado de “distúrbios de games”.

A ideia da OMS, pelo menos do explicitado, é possibilitar uma melhor identificação do problema, situando-o em um padrão de comportamento frequente ou persistente de vício em games, avaliado como grave e que levaria a pessoa a preferir os jogos a qualquer outro interesse na vida, comprometendo suas atividades cotidianas, como o autocuidado.

A despeito da necessária atenção que muitas pessoas, sobretudo crianças e adolescentes, demandam na relação com os dispositivos das chamadas novas tecnologias da informação e, em particular, com os games, a já esperada posição da OMS carece de uma análise crítica, inclusive por sua tendência em chancelar uma ampliação dos diagnósticos, principalmente os relativos aos transtornos mentais e comportamentais. O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5), por exemplo, apresentou em 2013 um catálogo de mais de 300 doenças. 

Mesmo a OMS se escusando em dizer que esse diagnóstico vai possibilitar e estimular políticas públicas, interessa saber que políticas? Políticas atreladas ao avarento e altamente lucrativo mercado farmacêutico? Em 2008, a própria ONU detectou, por exemplo, aumento no consumo de psicotrópicos. No Brasil, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) registrou aumentos nas vendas de antidepressivos e calmantes, de 2009 a 2010, 83% e 57%, respectivamente. A ritalina, usada no tratamento do transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), muito receitada para crianças, teve um aumento no Brasil de 775% em 10 anos.

O diagnóstico não deixa de ser uma operação de poder à medida que algumas coisas (pessoas!) são classificadas a partir de critérios construídos sócio historicamente, mesmo que balizados por discursos científicos. Aliás, o pensador francês, Michel Foucault, foi importante no desvelamento da relação existente entre a produção de verdade, poder e ciência.

Criar mais um diagnóstico, “distúrbios de games”, na perspectiva de focar o sujeito e o objetivo de sua ação, no caso o jogador e o game, é como jogar a água suja da bacia junto com o bebê, como diz o ditado. A questão não está no comportamento em si, muito menos no objeto destacado (no caso o vídeo game). Assim como outras situações de dependência e compulsão, o problema não é no chocolate em si, para quem vive o “vício” de comer, ou na malhação em si, para que vive a compulsão da corpolatria. O problema precisa ser apreendido na sua função, nas razões, no contexto social e familiar e nas necessidades do sujeito.

Uma criança classificada com “distúrbio de games”, apresenta uma relação hipertrofiada com o game porque tem pais que mantêm uma relação hipotrofiada com ela. Há também o grande problema, pode-se dizer endêmico do ponto de vista mundial, que são os processos sócio educativos marcados pela negligência e permissividade, tendo como pano de fundo uma sociedade extremamente individualizada e consumista, o que afeta profundamente o desenvolvimento de crianças e adolescente. Tudo isso precisa ser levado em consideração para entender a questão do “distúrbio de games” e não simplesmente estabelecer um diagnóstico centrado no indivíduo e no objeto de sua ação.

Ter esse diagnóstico tal como está sendo posto é deslocar o problema para algo que, no máximo, seria a ponta do iceberg, é cegar para as reais razões. Termina por criar um controle que só vai culpabilizar o indivíduo, em sua maioria crianças e adolescentes, e que de agora em diante vão ter o peso do carimbo da OMS/CID: doentes mentais!!!

Sim! É claro que existem crianças e adolescentes que precisam de ajuda na relação com os games, mas uma coisa é reconhecer que precisam de ajuda e outra bem diferente é diagnosticá-las como doentes mentais e tratá-las com psicotrópicos, que é isso o que termina por acontecer.