Ao trazer o tema
da judicialização da vida cotidiana para o nível da reflexão, objetivo
problematizar o contexto brasileiro no que diz respeito às suas instâncias de
poder e os desdobramentos dos controles, em especial, no mundo acadêmico.
Em um primeiro
momento, gostaria de situar as instâncias de poder que engendram a sociedade. O
estado moderno, portanto, é composto pelos três poderes (o legislativo, o
executivo e o judiciário). Sendo que o terceiro, por sua natureza, tem um papel
mais reativo, no que diz respeito às suas ações de acomodamento, julgamento,
ponderações, etc. De modo geral, cabem aos poderes executivo e legislativo um
papel mais propositivo, que antecipa, adianta, executa e propõe as ações do
estado e da sociedade.
Acontece que, no
Brasil, a despeito das contradições e crises institucionais que vivemos, o
poder judiciário tem ampliado seus espaços de ação e assumido papel
propositivo. Particularmente, entendo como uma acomodação que busca
manter certa ordem social, uma vez que os outros poderes enfrentam graves
dificuldades.
Não é por menos,
considerando essa crise, que presenciamos ministério público demandando prisão
de ex-presidente sem as devidas bases, órgãos de controle reorientado a vida
das instituições, ações judiciais que buscam equacionar problemas de ordem
pública que outrora caberiam aos órgãos mais executivos, etc. Nesse bojo, por
exemplo, incidem sobre o campo educacional mandatos de segurança para
matricular alunos por conta da idade / série, determinações para aprovar
candidatos em concursos, professor respondendo processo por reprovar aluno e ordens
para orientar a atividade docente, como é o caso da regulação sobre os diários
de classe. Não que estas situações não sejam passíveis de receber colaborações
do poder judiciário (e seus respectivos órgãos de controle), mas a questão
principal se dá pelo modo como esses dispositivos são acionados, normalmente
sem diálogos e sem entendimentos das especificidades, desconsiderando os
saberes técnicos, históricos e experiências de quem os vivem. Sobre isso há
vastos trabalhos, em geral inspirados no pensamento de Foucault, que analisa os
exercícios de poder.
Esse contexto, no
meu ponto de vista, tem criado um terreno propício para que se dê o fenômeno da
judicialização da vida cotidiana. De maneira simplificada, entendo esse
fenômeno como a invasão da vida privada de modo autoritário (é que claro que,
muitas vezes necessária e bem intencionada essa “invasão” no que concerne à
busca de uma ordem social e manutenção do estado de direito). Entendo ainda a
"vida privada" englobando a vida interna das instituições, como é o
caso do que é privado ao mundo acadêmico, à vida das universidades.
Antes de
prosseguir deixo claro que, ao abordar essas questões de maneira encurtada,
deixo várias pontas passíveis de lacunas, mas isso é o risco que assumo ao
tratar de um assunto polêmico em curto espaço de comunicação.
Bem, a
universidade tem também vivido essa situação, como é o caso recente da
exigência dos professores apresentarem planejamento das atividades e seus
relatórios. Até aí tudo bem, pois é importante e necessária a política do
controle social e transparência da coisa pública. O problema é quando o poder
excessivo do judiciário (e dos órgãos de controle) atua unilateralmente,
desconhecendo as especificações, no caso, da vida acadêmica e de suas formas de
funcionamento. A vida acadêmica, neste caso, é muito mais regida por um modus
operandi artesanal e não no padrão de uma linha de produção, via modelo
industrial. No caso dos PDs/PUDs (planos de disciplinas), que os professores
passaram a ser obrigados a enviar a programação da disciplina do semestre
seguinte ainda em plena finalização do semestre vindouro é algo que
"tora" o professor e a universidade como um todo. Afinal, como
planejar uma disciplina se o semestre não findou? Que tempo o professor tem de
agregar novos elementos a disciplina (leitura de livros, textos, materiais
didáticos)? Como atender essa exigência (que visa, no fundo, saber se o
professor faz jus dos seus proventos) se não há tempo de planejar
adequadamente? E o contrato pedagógico que só acontece nos primeiros encontros
de aula e tão fundamental para o planejamento? Além disso, essa ótica imposta
de fiscalizar a "linha de produção" do professor não seria
incongruente com a vida acadêmica? Os órgãos de controle não estariam sendo
autoritários quando impõem e exigem, sem ao menos procurar formas mais
dialógicas e mesmo eficazes de fazer valer o controle social?
Os professores,
sob a ameaça da deusa de olhos vedados irá acatar os ditames...mas será para
“inglês vê”. E com isso a academia é torada!
Marcelo
Ribeiro.