domingo, 24 de fevereiro de 2019

Dos subterrâneos da emergência e do desastre à Psicologia dos Direitos Humanos

Todo indivíduo tem direito à vida, 
à liberdade e à segurança pessoal.
 (Artigo 3°da Declaração dos Direitos Humanos)







É de conhecimento de muitos que Maceió (AL) enfrenta um dos maiores problemas socioambientais do país, que tem a ver com o aparecimento de fissuras e buracos na região do bairro Pinheiro, obrigando centenas de pessoas a abandonarem suas casas e outras tantas viverem a ameaça de terem que evacuar de seus lares a qualquer momento[1].
A situação ganha uma dramaticidade peculiar porque as causas para esse problema são ainda, oficialmente, desconhecidas, embora haja notícias da relação com a extração do sal gema nos subterrâneos desse bairro. Além disso, o problema é vivido de maneira crônica e aguda pelas pessoas. Crônica porque é uma situação que se alonga, perdura indefinidamente, mesmo que imperceptível, pois está ocorrendo literalmente abaixo dos pés dos moradores e transeuntes do Pinheiro. E aguda porque os impactos são intensos, afinal muitas pessoas tiveram que deixar suas casas ou mesmo vivem os impactos econômicos à medida que os imóveis perdem valor ou por conta de clientes deixam de frequentar os espaços no âmbito da comunidade.
Curiosamente, a sede do Conselho Federal de Psicologia de Alagoas (CRP 015) fica situado no bairro do Pinheiro[2], o que faz com que a situação ganhe uma dimensão particular no que diz respeito ao campo da chamada Psicologia do Desastre e Emergência. Os psicólogos e, em especial, os que compõe a atual gestão do CRP-015 são, ao mesmo tempo, partícipes enquanto vítimas e cuidadores. Só essa experiência possibilitaria uma interessante abordagem para melhor entender o papel de profissionais que estão nessa situação de serem cuidadores e também demandando cuidado.
Nos dias 15 e 16 de fevereiro tive a honra de facilitar uma oficina sobre a temática Psicologia da Emergência e Desastre para profissionais de psicologia que se voluntariaram a partir de uma ação do CRP-015. Essa oficina ocorreu no auditório do próprio conselho, justamente na comunidade de Pinheiro. A proposta do Conselho foi ofertar uma capacitação de nivelamento para, daí engendrar serviços de psicologia à população.
A oficina, justamente por causa do seu caráter prático, focou os manejos em situação de crise no contexto de emergência e desastre. De modo articulado com outras ações, como é o caso do Grupo de Trabalho (GT) envolvendo equipe multidisciplinar, inclusive com professionais e pesquisadores de psicologia da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), a proposta do Conselho se dá na esteira da contribuição e solidariedade, vindo a somar e integrar às ações do GT, da Defesa Civil e de outros atores sociais.
Por uma feliz coincidência, o dia proposto para o treinamento da primeira simulação organizada pela Defesa Civil, foi programada para o dia 16/02, as 15h., no nosso segundo dia da oficina. Essa ação da Defesa Civil foi incorporada à proposta da oficina de modo que os participantes puderam fazer parte da simulação, mas com o objetivo de interagir com a população, efetivamente participar das atividades e também fazer contato com as equipes que lá estavam. 
Essa vivência, essa imersão ao campo, possibilitou um conhecimento implicado mais apropriado, além das próprias atividades da oficina, inclusive com vários depoimentos dos psicólogos voluntários, alguns deles moradores do bairro. Isso, portanto, abriu possibilidades para que o campo da Psicologia da Emergência e do Desastre seja pensando por uma via mais social, comunitária, de empoderamento dos envolvidos e fundamentada nos princípios dos Direitos Humanos.
De modo geral, as discussões finais da oficina apontaram para um quadro preocupante, sobretudo no que diz respeito a vulnerabilidade da comunidade do Pinheiro, além, obviamente, de toda a gama sintomatológica já manifestada nas pessoas, como os transtornos de ansiedade. Esse quadro de vulnerabilidade passa por sinais de desconfiança em relação as autoridades. Algumas pessoas expressaram estar céticas em relação as promessas de seguridade social, de providências e mesmo algumas indicavam insegurança em fazer críticas e serem reconhecidas por isso.
Notou-se ainda o fenômeno do estigma em relação as pessoas que moram no bairro e de modo particular em relação as pessoas que moram na zona vermelha (zonas mais afetadas). Alguns até chamam de “bullyingsocial” quando alguém faz marcação sobre outra pessoa apontando que ela porta o carma de morar em Pinheiro ou na zona vermelha.  
Tudo isso, enfim, indica que a psicologia tem um importante papel à medida que possa contribuir para que a comunidade do Pinheiro esteja articulada, exercendo protagonismo, sobretudo em relação aos recursos a serem captados na provável classificação de estado de calamidade pública. E isso passa por fiscalização na aplicação dos recursos e mesmo em gestão participativa para tomada de algumas decisões, além, certamente, para barrar pseudos “salvadores da pátria”, seja por conta dos escusos interesses eleitoreiros ou econômicos.
Tudo isso remete para uma prática da Psicologia da Emergência e Desastre que, sem se esquivar do cuidado do outro, sobretudo em situação de crise, deve abordar também a dimensão social, num nível de empoderamento comunitário e articulado com os princípios dos Direitos Humanos. Importante, portanto, que o campo da Psicologia da Emergência e Desastre seja pensado e engendrado também pela via dos Direitos Humanos, que por ora vem sendo tão atacado.


Marcelo Silva de Souza Ribeiro
Professor da Univasf e psicólogo 



[1]Cerca de 2.400 imóveis estão direta ou indiretamente atingidos, sendo 777 classificados como localizados em área de alto risco (zona vermelha). Houve 60 residências esvaziadas, incluindo aí prédios inteiros. No bairro moram mais de 20.000 pessoas, sendo um bairro com uma faixa comercial e, em seu interior, residencial.
[2]O Conselho Regional de Medicina também está localizado no bairro do Pinheiro.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

Situação de emergência e desastre em Maceió





Recentemente, tem se explicitado um fenômeno alarmante em Maceió (AL), sobretudo via noticiários, mobilizações de pessoas e órgãos governamentais e não governamentais. Essa explicitação está relacionada ao aumento da frequência e intensidade dos abalos sísmicos registrados em área situadas no bairro Pinheiro, o que tem ocasionado graves rachaduras em imóveis e aparecimento de crateras nas ruas. Estima-se que tal fenômeno já vem ocorrendo na localidade há quase uma década, mas só agora ganhou relevante impacto social por conta das reincidências e suas extensões.

Os primeiros levantamentos sobre essa situação apontavam que estavam sendo afetados, ao menos, 2.400 imóveis, sendo 777 classificados como localizados em área de alto risco. Houve 60 residências esvaziadas, incluindo aí prédios inteiros. No bairro moram mais de 20.000 pessoas, sendo um bairro com uma faixa comercial e, em seu interior, residencial. 

Como medida avaliativa e para manejo da situação, o bairro Pinheiro foi classificado em áreas levando em consideração o grau de risco. Assim, o Serviço Geológico do Brasil nomeou área vermelha (risco) e área amarela (atenção).  Aproximadamente mais de 1000 imóveis estavam situados na área vermelha. As pessoas que moravam nessa área tiveram que deixar seus lares e as da área amarela precisam ficar atentas aos sinais de tremores, alertas e até mesmo quando chove precisam sair de suas casas.

Até o momento as razões explicativas sobre esse fenômeno são incertas, embora muitas pessoas apontem a causa para a extração do sal gema, feita pela Braskem, que explora esse minério há décadas no subterrâneo desse bairro, além de outras áreas de Maceió.

Esse fenômeno vivido pela população de Maceió e, principalmente, pelas pessoas do Pinheiro, tem provocado impactos profundos em todos os âmbitos da vida. Pessoas que foram obrigadas a deixar suas casas, incertezas generalizadas, rupturas nas rotinas, desvalorização econômica dos imóveis, comércio local fragilizado, estigmas sociais sendo formados, ruas, outrora cheias de vida, agora “ruas fantasmas”, tudo isso, enfim, tem trazido profundos sofrimentos às pessoas.

O drama da comunidade é incomensurável e o impacto, sobretudo na saúde mental, tem desdobramentos já visíveis, principalmente em relação a estados de medo, insegurança, ansiedade e luto. Toda uma sintomatologia daí é decorrente, como transtornos do sono, transtornos alimentares, depressão, fobias e até mesmo outros transtornos mais comprometedores.

A situação vivida por essas pessoas é uma situação de emergência e de desastre, mas o é de um modo particular. A incerteza de quando os fenômenos começaram, de quando vão parar (se é que vão parar), a falta de conhecimento das causas, o desconhecimento da verdadeira extensão do problema passa a ser somada com as informações desencontradas que são passadas pelos órgãos competentes e também por uma falta de segurança, na percepções de moradores, de que suas integridades serão garantidas, como por exemplo, o chamado aluguel social para quem precisou abandonar seus lares.  

 A particularidade, portanto, dessa situação de emergência e desastre advém do fato de que é algo intenso, porque já impacta fortemente a vidas das pessoas e, ao mesmo tempo crônico, porque tem uma duração no tempo. Além disso, essa duração no tempo é indefinida. As pessoas do Pinheiro vivem uma situação altamente ansiogênica.


Marcelo Silva de Souza Ribeiro
Professor da Univasf e psicólogo