segunda-feira, 28 de setembro de 2015

Por que o bônus regional é ilegítimo? O caso Univasf

Prof. Marcelo Ribeiro
Colegiado de Psicologia
Universidade Federal do Vale do São Francisco - Univasf



Este texto visa apresentar alguns argumentos sobre a ilegitimidade dos brados em prol do bônus regional para ingresso de estudantes na Universidade Federal do Vale do São Francisco – Univasf. Além disso, visa analisar as insustentáveis defesas argumentativas dos grupos que proclamam tal proposta, revelando um modus operandi de uma tradicional ideologia coronelesca-patrimonialista e a insurgente xenofobia à brasileira.

Antes de mais nada é importante sublinhar que as chamadas políticas reparadoras, portanto, inclusivas em sua perspectiva maior,  são necessárias, sobretudo em um pais com marcas profundas de desigualdades, como é o caso do Brasil (há que salientar que existem diferenças fortes entre cotas e bônus, além de outros tipos de políticas, suas intenções e amparos históricos).  Assim, o bônus, como possibilidade em si, de um tipo de política reparadora pode ter suas pertinências. O que será analisado neste texto é a particularidade de uma proposta do bônus regional para a Univasf e, principalmente, a gênese e o modus operandi que o movimento em defesa do bônus perfilou.

Segundo o dicionário Houaiss da língua portuguesa, “legitimação” (substantivo) significa: ato pelo qual se regulariza o que não está de acordo com a lei; ato de justificar; ação de pôr de acordo com a lei. E a palavra “legitimar” (verbo), quer dizer reconhecer como autêntico, verdadeiro, razão de ser.

Como é possível notar, tanto a legitimação quanto o ato de legitimar podem guardar o sentido de emergir algo, mesmo não estando na lei, ou reforçar algo da própria lei. Por outro lado, a ideia de legitimidade está profundamente arraigada no parâmetro da autenticidade, da verdade e da razão de ser. Embora seja melindroso tratar o que é verdade ou não, o campo da moral e mesmo da ética sugerem caminhos. Afinal, o relativismo absoluto é incompatível com a vida em sociedade. Em outras palavras, o fato de achar que algo é verdadeiro não nos dá o direito de fazer ou impor o que quisermos.

Mas vamos explorar um pouco mais esta questão partindo para o ponto privilegiado deste texto, ou seja, a questão mesma da reivindicação do bônus regional para estudantes de Petrolina (e também de Juazeiro – Bahia) ingressarem na Univasf.

Essa reivindicação não tem nascedouro recente. Na verdade, suas sementes foram plantadas por volta de 2010, quando a Univasf adotou o sistema SISU / ENEM como meio de ingresso para os seus cursos de graduação. Além disso, a instituição adotou, pioneiramente, o sistema de cotas, onde 50 % das vagas estavam destinadas a alunos oriundos de escolas públicas (independente da região).

Já naquela época, por conta dessa decisão da Univasf (e mesmo antes) houve uma série de manifestações e pressões de políticos, donos de cursinhos e estudantes para que a Universidade mantivesse seu próprio sistema de ingresso. Obviamente, os interesses já estavam claros, ou seja, manter algumas vantagens para grupos das duas cidades circunvizinhas.

Após uma série de manifestações, a favor e contra (muitos estudantes se posicionaram a favor do SISU/ENEM), a Univasf  seguiu o curso acertado desse tipo de ingresso que, além de democratizar o acesso, provocou uma série de impactos positivos para as universidades e também para a educação básica (há inúmeros documentos e pesquisas que comprovam e relatam esse fato).

Ainda nesse período, o grande argumento disseminado era que iria haver uma invasão de estudantes estrangeiros (diga-se de passagem, brasileiros de outros cidades e regiões), alijando a oportunidade dos “filhos da terra” de terem acesso a Universidade (na verdade, de olho no cobiçado curso de medicina). Os grandes promotores do movimento contra a adoção do sistema o SISU/ENEM eram, sobretudo, donos de cursinhos, alguns proprietários de colégios e certos políticos tradicionais da região. Após sacramentar a decisão no Conselho Universitário (Conuni) a respeito da adesão da Univasf ao sistema, uma página foi virada e o referido movimento entrou em estado de latência.

Aproximadamente 5 anos depois, o movimento ressurgiu com nova roupagem. Dessa vez, explicitando o bônus regional para estudantes de Petrolina e Juazeiro. Os argumentos apresentados podem ser resumido em 5 pontos:

1. Um fator relevante para que haja incremento do capital humano em uma região seria a inclusão da maior proporção possível da população local na escola, em todos os níveis de escolaridade;
2. Favoreceria a inclusão de estudantes locais.
3. Criaria  uma  barreira  a  injustiça (um sistema de protecionismo “aos da casa”, ou seja, da região). Há  universidades, por exemplo,  que  adotaram  o  bônus regional e os estudantes desse lugar poderiam vir a Univasf e o princípio da reciprocidade não estaria sendo respeitado;
4.  Diminuiria a quantidade de alunos da região que precisam estudar em outras localidades;
5. Diminuiria a evasão dos estudantes ;


Esses argumentos não conseguem ter sustentabilidade sob várias perspectivas, sejam legais, morais, científicas ou políticas (justiça social). Vejamos algumas dessas perspectivas:

a)     A Univasf já está comprometida com políticas de inclusão e sensível com o desenvolvimento regional. O sistema de inclusão, nesse sentido, é complexo e envolve uma série de modalidades. As pesquisas têm evidenciado mais as modalidades de cotas étnicas, sociais e constitucionais (pessoas com deficiência). A Univasf é pioneira nas cotas sociais e precisaria avançar mais nas cotas para pessoas com deficiência e nas cotas étnicas;

b)     A Univasf já é uma Universidade regional no que diz respeito à incorporação de estudantes da região do Vale do São Francisco. Desde 2010 cerca de 80% dos estudantes são da região. Esses dados, em 2014/2015 chegam a 94%! Mesmo no curso de medicina, a presença de estudantes da região acompanha a média de muitas universidades federais. Ela atende, portanto, a mesorregião.

c)     O princípio da reciprocidade parece estar muito restrito a algumas universidades, e mais: a alguns campi de universidades (e não a todos os campi) sob situações muito particulares que adoram o sistema de bônus regional. Além disso, há  a polémica em relação  à  legalidade  constitucional  do  sistema  de  bônus regional para UNIVERISDADE PÚBLICA FEDERAL. Neste caso, o que o outro faz, mesmo não estando de acordo, é razão para se fazer?

d)    Não há nenhuma evidência que o bônus regional combateria a evasão, ainda mais no contexto da realidade “univasfiana” (onde a maioria dos estudantes já é da região). O problema da evasão estaria muito mais centrado em outros aspectos, como a questão das políticas de assistência e permanência estudantil, com a questão do fortalecimento da educação básica ou mesmo no que diz respeito à formação docente – sobre a fixação de estudantes de medicina (o gold da questão) há também inúmeros estudos que demonstram que o mais efetivo para que o médico estabeleça seus laços na região são as residências médicas. Sob esse aspecto, a Univasf já tem se destacado (são 7 residências – há perspectiva dulicar).


A legitimidade, requer, como vimos, autenticidade, e esta, portanto, não tem meio termo e não se sustenta no vazio. Além disso, um movimento legítimo requer ética, o que parece muito distante para o caso aqui analisado.

Pois bem, após a retomada do movimento da bonificação regional, algumas audiências e eventos aconteceram nas cidades. Uma oportunidade interessante para o debate de ideias e o diálogo. Entretanto, a vociferação por membros desse movimento obnubilou qualquer oportunidade de uma relação dialógica.

Em declaração dada a mídia local um dos vereadores apologista do movimento disse que “50% do conselho da Univasf pensa que é Deus e os outros 50% tem certeza que é”, como forma de intimidar os representantes do Conuni para votar a favor da bonificação. Nesse caso, chamar os conselheiros de “Deuses” não é só uma afronta pessoal a cada membro da comunidade universitária, mas é, acima de tudo, uma tentativa (arrogante) de intimidar a autonomia universitária. Tal postura parece ter se propalado na importante Casa do Povo de Petrolina. Em um “blog” local foi feita a seguinte publicação:

“Os vereadores Alvorlande Cruz, PRTB, e Dr. Pérsio Antunes, PMDB, endureceram o discurso contra a Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf) na defesa do bônus para que os alunos da região possam ingressar na instituição com mais facilidade. Alvorlande informou que enquanto o Conselho Universitário não realizar a reunião que terá como uma das pautas, a discussão para a implantação do bônus na Univasf, barrará todas as matérias destinadas à instituição na Comissão de Justiça e Redação da Câmara de Vereadores”.

“Como membro a Comissão, já acertei com o meu colega de Colegiado, vereador Pérsio Antunes, para não andarmos com os projetos ligados à Univasf. Precisamos da aprovação com urgência do bônus da Univasf para nossos estudantes, sem isso nada da universidade que chegar pra gente terá andamento', ressaltou o vereador”.


Essa amostra revela que a Universidade Federal foi atacada frontalmente no que existe de mais caro em sua institucionalidade democrática. Para completar o desfile de arrogâncias, inverdades e desrespeitos, apresentamos ainda três situações que se passaram nos debates públicos.

a) Um vereador, ao ouvir que poderia ser até interessante bonificar estudantes de escolas públicas da região, a partir das cotas sociais já existentes (50% das vagas de graduação da Univasf são reservadas para alunos oriundos de escolas públicos de todo o Brasil), disse que era injusto para as escolas particulares – isto revela a quem defende e quais são os seus reais interesses;

b) Uma professora, que é dona de um dos cursinhos patrocinadores do movimento, defendendo explicitamente bônus para o curso de medicina, e dizendo que o movimento é legítimo, usou como exemplo sua suposta história de vida para ratificar o quanto o sertanejo é vítima. Ela disse que, embora tenha ficado em 1o lugar na prova didática, para um concurso docente na Univasf, caiu para o 6o lugar por causa da prova de títulos. Ela alegou que, sendo pobre não teve oportunidade de se qualificar e, por isso, não logrou oportunidade de disputar as vagas com os de fora. Entretanto, a referida professora se esqueceu de dizer que os dois candidatos aprovados na época, e que disputaram vaga com ela, um era do município de Floresta - PE e a outra de Petrolina – PE. A professora se esqueceu também de informar que ela mesma fez sua graduação em Letras em Belém do São Francisco, ou seja, fora do eixo Petrolina-Juazeiro, o que, em sua lógica, invalidaria sua formação fora desse eixo. A citada professora, além do modo pouco ético de se referir às pessoas as quais ela pouco conhece, não considera a trajetória desses profissionais e de seus esforços para alcançarem chegar à aprovação do referido concurso. Isso é grave e demonstra o “vale-tudo” para ganhar algo.

c) A explanação do pró-reitor de ensino, demonstrando que 94% das vagas das graduações da Univasf estavam preenchidas por estudantes da região (incluindo aí boa parte sendo de Juazeiro e Petrolina), foi entrecortada com falas de estudantes seguidores que bradaram dizendo que os dados apresentados eram mentirosos.

A clara demonstração de intransigência, intolerância e mesmo virulência nos atos demostra o modus operandi desses políticos, alguns empresários e seus séquitos. Querer impor interesses claramente privatistas, sobretudo de olho no curso de medicina, justamente porque criaria uma boa reserva de mercado, utilizando argumentos populistas em defesa dos “coitados sertanejos” é, no mínimo, ilegítimo.

Isso revela uma ideologia coronelesca-patrimonialista à medida que desrespeita a institucionalidade democrática, querendo impor interesses espúrios, ou seja, que a Universidade Pública Federal seja vantajosa a esses grupos privados. Ademais,   insurge uma espécie de xenofobia à brasileira quando esse movimento alude barrar brasileiros em nome de um suposto discurso do sertanejo-vítima. O interessante e o bizarro de tudo isso é que, em nenhum momento, nem esses políticos e nem esses empresário, saíram em defesa da qualidade de escola pública.

O bônus regional, portanto, na particularidade que se apresenta para Univasf, não é legítimo. Porém, não só ilegítimo para universidade, mas também uma afronta para a sociedade regional e brasileira.

Além de evidenciar a ilegitimidade desse processo, o “caso Univasf” expressa, apesar de suas particularidades, uma insurgência nacional de interesses privatistas (em detrimento do público), uma postura da intolerância e de relações autoritárias. Parece que estamos vivendo um momento muito delicado, onde as institucionalidades democráticas, duramente construídas e ainda por se consolidar em muitas situações, se encontram ameaçadas por setores da sociedade que voltam a mostrar suas garras.

Este caso vivido no contexto da Univasf expressaria, portanto, um sinal, um sintoma social de ameaça às institucionalidade democráticas do Brasil? Em um período de fragilidades políticas e esgarçamentos  de conquistas sociais, os interesses privatistas estariam ganhando espaços? E a educação pública, gratuita e de qualidade, como ficaria?




terça-feira, 22 de setembro de 2015

Documentário: Vida Escola em Alta Tensão


Documentário: Vida Escola em Alta Tensão

Este documentário, fruto de um trabalho desenvolvido no curso de Psicologia da Universidade Federal do Vale do São Francisco - Univasf, em parceria com a RTV Caatinga e com o Colégio Estadual Joaquim André Cavalcanti, teve como objetivo propor um diálogo entre os atores da comunidade escolar, evidenciando as tensões vividas. Embora tenha como cenário o cotidiano do Colégio, o documentário busca traduzir realidades comuns a tantos outros.
É importante ainda frisar que o Colégio Joaquim André Cavalcanti é também rico em possibilidades de superações e que há muitas ações exitosas em andamento.


segunda-feira, 7 de setembro de 2015

Sobre rotina e movimento

Obs. Retomando uma das caras temáticas da tese: a rotina e o ajustamento criativo.

 

 

Sair da rotina é tão importante quanto o estar na rotina. O sair da rotina e o estar em rotina é uma boa tradução do estar e do vir a ser, da constância e do movimento. O estar é o presente do ser inserido, contextualizado, do ser que vive, encarnado e em relação. Mas o presente só é presente se ele for constantemente atualizando, portanto, superado e sempre enquanto vir a ser. Daí se procedem as inversões, as integrações e a dialética dialógica. Se, em um primeiro momento, estar é constância e vir a ser, movimento, agora o vir a ser passa a constância e o estar, ao movimento. Esse enquanto” vir a ser é a constância, é que per-dura e o estar, porque para estar tem que se superar, é o vir a ser, a superação. 

 

O problema é quando a rotina fica rotineira. O problema é quando o estar perde sua capacidade de vir a ser e quando o vir a ser perde sua capacidade de estar. Tanto um quanto o outro conduzem a rotina rotineira. Ambos se perdem e se deixam e se desencantam. A rotina rotineira é empobrecida de vitalidade, de criação, de interesse, portanto, de vida. Pois vida é criação. A estagnação da rotina rotineira não corresponde, necessariamente, ao fazer ou ao deixar de fazer, aos comportamentos, ao mundo da objetividade. Essa estagnação diz respeito ao modo do como se vive, do como se sente ou do como se vivencia o fazer e os comportamentos. 

 

Mas a partir daí é possível se perguntar: uma vez que a estagnaçãé um modo de como se vive ou como se vivencia o fazer e os comportamentos, o que faz a pessoa a vivenciar de um jeito ou de outro?

 

 

 

Sobre  Rotina e Movimento: o amor faz o sentido

 

Indo de maneira direta ao ponto, possivelmente o grande diferencial seja atuar na vida com amor, ao menos nos termos proposto por Humberto Maturana. Nesse sentido, o amor tem a ver com a intensidade de estar, com o interesse genuíno pelo outro ou pelo que faz, com o contato e a presença de estar sendo na relação com os demais ou na atuação do mundo. Esse sentido de amor não tem nada a ver com aquela visão romântica de entes apaixonados muito comum na literatura. Maturana vai falar de amor como condição básica de aceitação legítima do outro, de ligação com o outro, mas que estendo aqui como sendo também uma maneira de estar no mundo, uma maneira genuína de atuar sobre o mundo de modo que o sujeito produza sentidos autênticos para sua existência.

 

De modo diferenciado, mas que termina por convergir na direção de um estado do ser, de um estar sendo, Antony Giddens fala que a rotina mecânica é aquela que o sujeito vive de modo dissociativo. Giddens, por sua vez, faz referência a ideia do "eu desencarnado", de Ronald Laing. O sujeito, nesse caso, atua na rotina dissociado do que vive enquanto "eu". Um exemplo seria aquele sujeito que, na sua rotina cotidiana, sente que ele é um diferente, que ele não está ali de verdade e que suas ações são mecânicas, que não fazem sentido. O sujeito, nesse exemplo, atua sobre o mundo esvaziado de amor porque não consegue se ligar no que faz, porque não está em contato com o que faz.

 

Viver a rotina com o interesse genuíno, estar presente em suas ações e se sentir "encarnado" no que faz é uma alternativa à estagnação e a rotina mecânica. Essa outra maneira de estar faz eco em apostar no amor como condição basilar para a vida, sobretudo para a vida que requer a rotina criativa. Apostar no amor, então, é acreditar naquilo que se faz e esperançar, como diria Paulo Freire, na produção de sentidos e significados enriquecedores que levam ao ser mais.

 

Partindo desse desdobramento, ou seja, de que o amor é condição para a rotina criativa e que esta, portanto, é possibilitadora de sentidos e significados, o contexto adoecedor e, portanto, da rotina mecânica, se dá pela falta de sentido, ou mais precisamente falando, pelo entorpecimento de sentido (porque sempre estamos a produzir sentidos, mesmo que desvitalizados e alienados). Não existe nada mais entorpecedor para os atores da educação do que, por exemplo, viver a sala de aula sem perceber um sentido, tanto para o estudante quanto para o professor. Certamente essa situaçãé uma experiência que obstaculariza a aprendizagem e deprime os professores.

 

Existiram experiências, assim, tão impeditivas para produção de sentidos e significados? Existiram experiências em rotinas mecânicas e outras em rotinas criativas ou vivas?

 

 


sexta-feira, 4 de setembro de 2015

Lições de classes sociais

Faltavam duas horas para pegar minha filha na escola. Resolvi aproveitar esse tempo para lavar o carro. Escolhi uma das rampas da orla de Juazerio, onde ficam vários flanelinhas, para dar um leve trato no carango. Como o lugar é aprazível seria perfeito para uma leitura enquanto estivesse aguardando. Acomodei-me sob uma boa sombra, acertei a lavagem e coloquei-me a ler. Estava deleitando-me com Giddens, "Modernidade e Identidade". Alguns minutos depois sentou ao meu lado um senhor de aparência bem simples. Puxou conversa com uns homens que também estavam próximos. Aparentemente este senhor tinha tomado algumas, pois exalava álcool e sua voz estava ligeiramente empastada. Como se os homens não lhe dessem muita atenção, o senhor continuou com sua prosa. Eu também não dei atenção direta, pois estava determinado a vencer um dos capítulos do livro. Porém,  como eu estava próximo, era impossível não ouvir o que narrava. Em dado momento o senhor começou a falar que era um absurdo a nova lei do governo que aumentava o tempo de aposentadoria das pessoas. Ele disse que, para as pessoas que ele conhecia, as humildes e pobres, seria impossível chegar aos 70 anos. Bem antes disso morreriam. Ele observou que as pessoas de seu círculo envelheciam rápido e mais rapidamente morriam. Ele ainda explicou o porquê disso. Para ele, eram as péssimas condições de vida,  a alimentação cheia de produtos químicos, de veneno, o sol castigando a pele, a falta de assistência médica, etc. Tudo isso, enfim, contribuía para a extração da vitalidade, da vida... Essa condição de vida precária e dura fazia com que muitas pessoas adoecessem, envelhecessem demasiadamente e morressem abaixo do que fora estipulado como media. Assim, portanto, essa nova lei que estipulara uma outra idade para aposentadoria era injusta para uma parcela da população.
Aquela breve observação e análise implícita, feita pelo senhor, por mais simples que fosse, foi extremamente precisa e lúcida. Ouvi-lo foi tão formativo quanto a leitura de Giddens. 
Realmente a questão das classes sociais é algo que deve sempre ser considerado nas politicas. Aliás, um país como Brasil, que é marcado profundamente pelas desigualdades sociais, não pode jamais desconsiderar a questão das classes sociais. 
Se esta categoria das ciências sociais, as classes sociais, não explica tudo, não pode de jeito algum  ser desconsiderada.
Saí de lá com uma consciência mais marcada em relação às diferenças e o quanto isso é impactante em nossas vidas, em nossa constituições, gostos, apreciações, perspectivas... Peguei meu carro, paguei o flanelinha e fui buscar minha filha na escola, justamente como fazem muitos pais de classe média.

quinta-feira, 18 de junho de 2015

DIFERENÇAS CULTURAIS NA EDUCAÇÃO DOS FILHOS: JEITO BRASILEIRO E CANADENSE DE EDUCAR

Eu tive a alegria de passar alguns dias na companhia de amigos canadenses, um casal com sua simpatissíma filha de três anos. Foram dias para matar as saudades e também para discutir e organizar projetos em comum. Afinal, compartilhamos da mesma vida profissional, que é a universidade.

Entre um papo e outro falávamos das diferenças culturais dos nossos países, mas sobretudo do jeito de educarmos os filhos. Longe de buscarmos generalizações, intencionávamos apreender um jeito comum do brasileiro e do canadense educar seus crianças. Entre uma conversa e outra lembrei de algumas cenas de crianças, sobretudo quando da minha estada no Canadá.

Lembrei, por exemplo, que era comum encontrar um monte de crianças circulando nas ruas. Estas, certamente em alguma atividade escolar, ficavam segurando uma espécie de corda (algo como uma centopeia, onde cada criança segurava uma perninha) e sendo guiada pela professora. Eu ficava admirando aquela cena, onde as crianças caminhavam de maneira comportada. Ficava imaginando tal situação no Brasil. Pelo menos o Brasil que eu conheço as professoras teriam um certo trabalho para manter a ordem da fila e a disciplina das crianças.

Comentava com os meus amigos que no Brasil tendemos a nos relacionar de maneira mais dengosa com os nossos filhos, tendo um cuidado e atenção que beiraria a proteção demasiada. Sinto que nós brasileiros, dizia para eles, nos “derretemos” muito com as crianças, sentimos até pena por vê-las se debulhando com algo. Não nos contemos com o nosso sentimento de pegar, apertar, de fazer “bilulu” e terminamos por fazer por ales aquilo que elas, talvez, pudessem fazer sozinhas.

Dizia ainda que os via todo o tempo incentivando os filhos a fazer por eles mesmo e uma frase muito comum era: “tu es capable” (esse casal era do Québec, o lado francês do Canada). Isso nos remeteu a refletirmos sobre a questão da autonomia e como esta tem a ver com a disciplina e com a questão dos limites. Realmente, não há como conceber a autonomia sem relacionar com o limite. Assim, uma educação voltada para autonomia implica, necessariamente, em uma educação onde a criança lida melhor com os limites e, consequentemente, com a disciplina.

Resgatando alguns princípios piagetianos sobre o conceito de autonomia (sobre desenvolvimento moral) este se dá de maneira mais favorável quando a criança é exposta a um contexto de diálogo e também de responsabilização por seus atos. Tal contexto ajudaria a criança situar suas relações com os outros e compreenderia melhor as regras sociais.

Mas voltando a história com os meus amigos, houve um dia que fomos a praia. Além da oportunidade de brincar na areia e na água com a filhinha deles, vivemos uma situação que recuperou o nosso papo sobre educação. Quando estávamos a sair da praia, fomos lavar os pés em um chuveiro (desses que ficam instaladas ao lado das barracas de praia) para tirar o excesso de areia. Quando chegou a vez da menininha, esta pediu ajuda dizendo que não conseguia esticar seus pezinhos até encontrar a água. Novamente veio a fala dos pais: “tu es capable”. Então ela se esforçou mais um pouquinho e conseguiu. Eu tive que me conter, pois estava quase pegando a coitadinha e ajudando ela a lavar os pés (repararam meus diminutivos?!).

Não quero dizer que os meus amigos são frios ou negligentes com a filha,. Totalmente longe disso. Ao contrário mesmo. Eles são muito afetuosos e cuidadosos com a filha. O tempo todo eles se beijam, se tocam e trocam palavras de carinho. Também não quero dizer que há um jeito cultural mais certo de educar do que outro (até porque pensar genericamente é muito perigoso). Nossa conversação versava sobre as diferenças culturais nos processos educativos e como isto parecia ter repercussões na aprendizagem e no desenvolvimento das crianças. É certo que a fronteira entre excesso de autonomia e negligência pode ser tênue, ou do excesso de cuidado e proteção pode prejudicar as crianças. Essas situações extremas não correspondem aos modos culturais de se educar. Além disso há toda a questão de que as culturas produzem sentidos relativos aos seus próprios mundos. Ademais, essas diferenças culturais nos ajudam a refletir sobre nós mesmos, principalmente, aqui em questão, sobre o nosso jeito de educar as crianças.


Por Marcelo Ribeiro.