terça-feira, 16 de abril de 2019

PSICOLOGIA DO MASSACRE: Contextos de desenvolvimento e outros sentidos e significados escolares[1]


Texto em desenvolvimento

Marcelo Silva de Souza Ribeiro[2]


Uma querida professora da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), e que foi minha co-orientadora do mestrado, Stella Rodrigues dos Santos (SANTOS, 1997), desenvolveu uma pesquisa no seu doutorado sobre a questão da violência na escola. A pesquisa se deu na década de 1990, e nesse período havia um interesse muito grande a respeito da relação violência e escola (violência da escola, violência na escola, violência contra a escola...). Stella Rodrigues descobriu que a escola pública, para muitos jovens, era um lugar prometido, realizador de sonhos. “Meu filho, vá para escola ser alguém”, diria um pai. “Você não tem nada na vida, esta rua onde moramos é suja, o nosso bairro não tem nada que preste, o seu pai está desempregado.... na escola você será alguém,” diria uma mãe. Só que na escola não é bem assim, pois as condições objetivas e subjetivas para uma parte significativa dessas instituições não são favoráveis no sentido de possibilitar a realização desses sonhos. Muitas vezes é uma escola que não se aprende aquilo que lhe foi prometido, que é vítima de uma violência ampla, que reproduz outras violências e que termina, no desgosto de muito educadores, negando alguns direitos. É claro que falo isso com a total consciência de que a escola não é uma vilã, que a equipe escolar não é formada por pessoas naturalmente más ou mesmo que só há experiências destrutivas nas relações interpessoais (muito possivelmente ao contrário e é muito importante dar visibilidade a positividade das escolas, sobretudo as públicas). O que coloco é que a promessa feita por todo um projeto social de que a escola será a grande redentora e que possibilitará transformações positivas nos indivíduos nelas inseridos, sobretudo àqueles que já vêm de vidas subtraídas (materialmente e emocionalmente), não se cumpre para muitos jovens, em particular para escolares que portam alguns marcadores sociais como étnico, geográfico, social, género, etc. 

É dessa polarização, portanto, desse amar a escola como redentora, como último bastião para uma vida digna, como abrigadora dos sonhos e ao mesmo tempo negadora e de formação vilipendiosa, que surge esse sentimento contraditório entre amor e ódio, e que Lacan forjou o neologismo “amodio” (é claro que o Lacan usou esse neologismo num contexto específico e o compreendia de modo particular. Estou aqui tomando de empréstimo e dando um uso próprio). 

Nesse sentido, o amor vem da imagem idílica formada, primevamente, pela representação da escola. O ódio, no caso, ganha concreticidade via a violência contra a escola (depredações patrimoniais, ataques aos professores e brigas gratuitas com os colegas). Segundo Stella, estaria por trás dos atos de atacar a escola um certo sentido e significado de escola, pois só se ataca algo quando esse algo tem alguma relação, algum vínculo. Então a primeira coisa que podemos apreender daí é que existe, em certa medida, uma positividade no que diz respeito a violência contra a escola. Positividade aqui é para marcar que há um sentido e significado e não a sua mera subtração (negatividade) de vínculo com a escola. Daí ,somos demandados a compreender esses sentido e significados para melhor orientar a função escolar.

Bem, mas se a escola não existisse hoje, qual o outro local de contato coletivo, público e de convivência haveria para crianças e adolescentes? Parece-nos que, cada vez mais, não é a família o espaço de maior convivência, nem tão pouco a rua, que virou um “não lugar”. Muito menos a praça, que foi substituída pelo shopping, configurado como espaço privado. Onde o jovens e a crianças se encontram hoje?  Sim, se encontram também nas redes sociais digitais, sem dúvidas. E isso, longe de alguns moralismos, é legal também, mas os espaços digitais de convivências são sempre simulacros da realidade. Como a virtualidade é um simulacro da realidade, há coisas que o simulacro não dão conta, como a própria convivência experienciada no contato vivo com o outro. 

Talvez a escola, nesse mundo contemporâneo e para muitos jovens, seja ainda o último lugar, mas não só de “ser alguém na vida” como também de poder experienciar as “com-vivências”, ou pelo menos algumas de suas qualidades. Assim, quando a promessa não é realizada, quando não é cumprida, o amor e o ódio brotam. Mas isso seria suficiente para justificar o massacre de colegas e de professores como ocorreu e que pode continuar a ocorrer em escolas mundo afora?  Ah! Algumas explicações podem se derivar de uma simples taxação “de quem fez o que fez é porque sofreu bullying”, mas isso pode ser reducionista (sem retirar, obviamente suas possíveis correlações). 

Então, por mais bizarro que seja, existe uma positividade à medida que a escola ainda é um lugar de sentido e significado, mesmo que seja para esse tipo de coisa (massacres). Entendendo isso, caberia uma outra pergunta, talvez mais proativa: quais sentidos e significados outros poderiam ser produzidos de modo que não passasse pelo ódio, pela vingança, pela frustração, pela violência...? 

Tudo indica que a produção de sentidos e significados tem uma forte relação com os contextos de desenvolvimento, tanto os micros quanto os macros contextos BRONFENBRENNER, 1996). Sobre isso, há um interessante trabalho de Angelina Bulcão Nascimento (1999)[3], que foi professora da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e abordou a questão dos jovens em suas gerações. Ela descreveu e analisou a juventude brasileira desde da década de 1950. Além desse da obra de Bulcão, há uma rica fonte de dados sobre escola e mundo escolar em notícias e matérias, que é o acervo digital do Jornal Folha de São Paulo. Nesse acervo, numa pesquisa simples, tendo o descritor “escola”, facilmente é possível apreender quais os temas ligados a escola preocupavam a sociedade. Assim, tanto no estudo de Bulcão, quanto no acervo da Folha é nota-se, por exemplo, que na década de 1960, o estudante aparecia como protagonista social e que as escolas e famílias se afligiam com os jovens nos movimentos sociais, com a coisa do revolucionário, com o movimento hippie, com as meninas usando calça... Essas informações trazem a dimensão histórica e permitem compreensões de que são processos construídos e reconstruídos. 

Mas e hoje? Hoje parece ser também a questão do bullying, da violência, do massacre. É importante, portanto, entender como a escola é ocupada, a função da escola, como os jovens se expressam em cada momento, em cada etapa... e isso nos ajuda, por sua vez, a compreender os contextos de desenvolvimento em seus níveis micro e macro. Obviamente, essa compreensão não significa não abrigar alguns cuidados, atenção, não regular condutas e não fazer uso de dispositivos de segurança, mas que ao se ter cuidado, ao se ter ponderações que seja acompanhado do bom senso.

Podemos e devemos pensar e buscar outras formas de interagir e fazer a escola, outras formas de sentidos e significados da escola.  Mas quais?

Retomando a questão dos contextos de desenvolvimento em seus níveis micro e macro, mesmo que sem o fôlego de uma melhor elaboração, é possível dizer que, em relação ao contexto de desenvolvimento no nível micro, estamos marcados por relações (parentais e também entre educador-educando) permissivas, autoritárias e, por vezes, negligentes. Tais qualidades relacionais são danosas ao desenvolvimento global da criança e do jovem. Na outra ponta do nível, no macro, vivemos contextos de desenvolvimento marcados pela insegurança e pelo medo. Vivemos um estado permanente de exceção e essa tem sido a tônica do controle e também do business. As mídias irresponsáveis, por exemplo, ganham dinheiro com a espetacularização da violência, os governos ganham eleições pregando o medo e o ódio, a proliferação da narrativa da insegurança nos faz abrir mão da liberdade e da solidariedade, nos deixando mais individualistas.

Importante lembrar alguns ensinamentos de Reich (1988) em Psicologia de Massas do Fascismo quando sobre a insegurança que leva ao medo, que produz raiva, que se expressa pela violência e que toma o outro um inimigo. 

É importante que a escola possa quebrar esse circuito perverso (ALMEIDA, 2001) e se elabore mais como um contexto de acolhimento, de respeito, de limites, de amor.... muito mais do que um espaço de treinamento. Que tenha mais uma função de “com-vivência” e de amor a sabedoria (filosofia), do que cara de indústria, que tenha muito mais amorosidade do conhecimento de ser, do que educação bancária (FREIRE, 1981).


REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Ana Rita Silva. A Emoção na Sala de Aula. Campinas, SP: Papirus, 2001. 
BRONFENBRENNER, Urie. A Ecologia do desenvolvimento humano: experimentos naturais e planejados. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro. Editora Paz e Terra. 1981.

NASCIMENTO, Angelina Bulcão. Trajetória da juventude brasileira: dos anos 50 ao final do século. Salvador, Secretaria da Cultura e do Turismo, EDUFBA, 1999. 

REICH, Wilhelm. Psicologia de Massas do Fascismo. São Paulo: Martins Fontes, 1988. 

SANTOS, Stella Rodrigues. O mito da homogeneidade nos jogos de poder/saber/ verdade no cotidiano escolar. Doutorado em Educação(Psicologia da Educação). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, PUC/SP, Brasil. 1997. 




[1]Texto apresentado na Roda de Conversa sobre Psicologia do Massacre, em 25 de março de 2019, na sala do Núcleo Temático, do campus Centro – Petrolina, da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf). Esse evento foi organizado pelo NUPIE, LETRANS, CEPPSI, NEPEF e Colegiado de Psicologia (Univasf).
[2]Professor do Colegiado de Psicologia. Doutor em Educação. E-mail: marcelo.ribeiro@univasf.edu.br
[3]Tive a alegria de ser professor substituto de cadeiras que ela lecionava.