terça-feira, 16 de junho de 2020

A ESCOLA DE CRONOS: O “DEUS” QUE DEVORA CONTEÚDO E GERA ANGÚSTIA EM TEMPOS DE PANDEMIA



Em relação com o que estamos vivendo nestes últimos meses, observamos um cenário mundial inusitado, onde somos afetados pela pandemia decorrente da COVID- 19. Pode-se refletir que o tempo vivido e o tempo cronológico estão em real descompassos. Os números de casos de infectados pelo coronavírus em nosso país, está cada vez mais alarmante e todos estamos impactados, inclusive no meio educacional, pois, além das angústias próprias dessa situação, há obrigatoriedade de cumprimento da carga horária e dias referentes aos conteúdos escolares, via atividades remotas, numa ação que supõe garantir o ensino e a aprendizagem.

Na Lei de no 9.394 de 1996, também conhecida como a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, é sinalizado em seu artigo 24 e 31, que no ensino fundamental e médio e na educação infantil, respectivamente, o ano letivo será organizado por intermédio da carga horária mínima de 800 horas, distribuídos em 200 dias letivos. Os professores, nesse caso, são incumbidos de ministrar os dias-letivos, além de horas dedicados ao planejamento, avaliação e a formação profissional.

Alguns meses do ano letivo 2020 se passaram e o desafio do cumprimento legal é posto à prova, demandando respostas à comunidade escolar que podem ter interpretações variadas. Há um tempo que está sendo perdido? O tempo está sendo devorado? Ou seria tempo de criação e valorização da experiência vivida?
Lembremos que a escola está para-além dos seus muros, e que é lugar facilitador das aprendizagens, sendo espaço de convivência e, por tudo, formativa. Nesse sentido, qual melhor interpretação, ou ainda, qual resposta poderia a escola produzir, no veio legal, considerando a situação angustiante que todos estamos a viver?

Na mitologia grega, Cronos é conhecido por ser o deus do tempo, que controla o início e o fim de tudo, que consome as coisas, as pessoas e rege os destinos. O deus Cronos destrona o senhor do céu Urano - seu pai, para comandar o princípio e o fim de tudo. A escola disciplinar, conteudista, adestradora de corpos, como outrora já nos apontava Michel Foucault, está bastante envolvida em suprir um tempo que considera perdido perante o perigo à sua porta. A escola, pelo viés Cronos, destrona a vida, marcando-a com a exaustão de envio de “tarefas e mais tarefas” em regime domiciliar, levando ao ambiente doméstico o “correr contra o tempo”. As escolas impõem, ao assistirem aulas remotas no modo virtual, uma preparação do ambiente doméstico comparado a escola, inclusive, em alguns casos, obrigando os alunos a utilizarem o fardamento escolar, orientando os pais a fotografar e comprovar que o tempo estava sendo destinado a execução das tarefas.

O Cronos neste tempo de pandemia vai ordenando que todos, absolutamente todos, estejam em torno do foco conteudista, de tentar dar conta de uma lista de conteúdos que talvez, para muitos, nesse dado momento, seja vazio de sentido, já que o saber se dá na relação de “ensinagens e aprendizagens”, em que as engrenagens funcionam pelo o envolvimento de todos.

Após destronar o pai Urano, todos aqueles que nasciam de sua mãe Gaia eram devorados por Cronos, assim também nossos estudantes estão sendo devorados” por uma série conteudista e disciplinadora, para sanar a preocupação de pais quanto ao investimento escolar”, as ameaças em ter que passar de ano e estar competitivo para o ENEM ou para as avaliações educacionais, que visam produzir índices.

Cronos é o devorador do destino, assim há picos de ansiedade em todos os lados, e na família não é diferente, já que, atualmente, o lar virou também o home office. Para uns é a experiência da crueldade vivida na própria condição de trabalho docente, que já era precarizado. Os professores, arremessados à boca devoradora de Cronos, têm que atender a todo momento demandas de alunos e pais via as telas, como um buraco negro a sugar suas energias.

Se antes o professor tinha um tempo já reduzido para recompor sua vitalidade, nos raros momentos de descanso, agora o seu tempo não o pertence mais, definitivamente. As cobranças ilimitadas do sistema educacional, seja na rede privada ou pública, via de regra, consomem o tempo vida...

Diante disso, podemos refletir sobre várias questões, dentre elas elencamos: esse contexto de isolamento social está sendo considerado como uma “perda de tempo” para os escolares e famílias? O que pensam os estudantes sobre? Será que há aprendizagens do viver capazes de agregar a essas e as próximas gerações diante da gravidade de tudo o que vivemos? Vale a pena continuar realizando aulas remotas para suprir o que se considera “tempo perdido”?

Cronos é o deus que controla o tempo desde o nascimento até à morte. Ele é cruel, escraviza os seres dentro de seu tempo, nos mantém na sensação do tempo que passa e se perde. Em nossa sociedade sente-se profundamente isso porque vivemosenquadrados nas horas contadas do relógio, encaixados nas expectativas sociais e tantas vezes nos perdemos de nós mesmos. Cronos é também o deus da agricultura, que assim como nós humanos com nossas polaridades entre aspectos favoráveis e desfavoráveis, ele também nos indica que há tempo para plantar e tempo para colher. Ou seja, há tempo para tudo, tempo para refazer o tempo, seja na escola ou na própria vida.

Assim como no mito de Cronos, a escola está abarcando a luta para vencer o tempo estipulado por um sistema, que devora e aprofunda a angústia, levando a todos a viverem impactos e distanciando ainda mais o prazer pelas “ensinagens e aprendizagens” que acontecem com o próprio viver, com as experiências, com a convivência com quem está mais próximo, com todo o planeta que tenta se equilibrar dia após dia em torno de conflitos que impossibilitam a integridade humana.

Que as nossas preocupações sejam reservadas para o agora, sabendo viver o hoje com o que nos é possível realizar, adotando medidas que pensem no aluno, no professor, no pai/mãe/cuidador enquanto pessoa e não alguém que precisa produzir para alimentar os números de um sistema que a todo custo quer devorar e consumir o que ainda há de humanidade.

Clara Maria Miranda de Sousa
(Psicóloga, Pedagoga e Mestra em Formação Docente e Práticas Interdisciplinares)

Marcelo Silva de Souza Ribeiro
(Dr. em Educação e Prof. da Univasf)
Pesquisadores no Laboratório de Estudos e Práticas em Pesquisa-Formação (LEPPF).

sábado, 6 de junho de 2020

“EDUCAÇÃO CRÍTICA EM TEMPOS DE PANDEMIA” INFODEMIA E FAKE NEWS



Em tempos de pandemia, a educação crítica nos impulsiona a refletir acerca da veracidade e autenticidade das informações que circulam nos ambientes digitais. O excesso e a poluição de informações, chamada de infodemia, compondo o ecossistema virtual da fake news, passa a ser um dos principais desafios a ser encarado nos processos educativos da contemporaneidade.

Este é um panorama realmente novo. Os processos educativos com foco na criticidade nos apontam o caminho, que seria o mais apropriado para a convivência harmônica nos espaços midiáticos, sobretudo quando permeados intensamente pela emoção e polarizações, obliterando a consciência, a responsabilidade e empatia. Diminuir o abismo proporcionado pelas novas tecnologias entre aqueles que sucumbem na infodemia e os que a ultrapassa, é um processo gradual, que muito nos desafia.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) anunciou que vivemos uma infodemia contexto, está relacionada ao exponencial de informações, com todo tipo de qualidade e credibilidade (KALIL & SANTINI, 2020)infodemia relacionada à desinformação, é rapidamente difundida nas mídias sociais e associadas a determinado assunto, como o próprio vírus de uma pandemia, no qual estamos expostos, dificultando a localização de fontes confiáveis.

Esse movimento da infodemia é uma ameaça eminente à saúde global, dando corpo a todo tipo de visão, com ênfase a desinformação propagada, inclusive, por autoridades governistas. A infodemia chancelada por governos, geralmente de matiz autoritário, amplia o poder de convencimento, contagiando mais fortemente a opinião coletiva. Concomitante a isso, os meios difusores oficiais e as mídias reproduzem seus discursos alavancando e dando maior amplitude, levando informação (im)precisa a todos os lugaresEssa customização da desinformação propagada pela infodemia, incita, via de regra, o ódio, gerando nessa vertente conflitos ideológicos, partidários e identitários. Os efeitos desse contágio são deveras perniciosos, uma vez que ocasiona fissuras partidárias, seguindo a antiga estratégia de guerra do império romano: dividir para conquistar (BICHARA, 2020).

Ainda nesse contexto, como já implicitamente apontado, é importante enfatizar que uma forte vertente da infodemia é a fake news, notícias falsas, que costumam serem definidas como notícias, estórias, boatos, fofocas ou rumores deliberadamente criados para ludibriar ou fornecer informações enganadoras. A fake news visa ainda influenciar as crenças das pessoas e manipulá-las em prol de interesses escusos (SANTAELLA, 2018). A fake news sempre existiu, mas ganhou nova roupagem com a expansão das mídias digitais. Atualmente, conta também com perfis nas redes sociais programados por computadores para fazer tudo o que contas comuns fazem, espalhando informações de maneira automatizada-bots (robôs), tendo inserções também na internet profunda, obscura e escondida - dark web (internet obscura).

Em 30 de abril, a infodemia de fake news, “caixões vazios”, rendeu 1,9 mil compartilhamentos. As imagens continham caixões vazios e abertos. Segundo a Agência Lupa, especializada em fact checking, uma das imagens tinha sido feita há mais de dois anos, e a outra em 2015, sem nenhuma relação com o contexto de pandemia. Com isso, o intuito era descaracterizar os dados oficiais divulgados diariamente pelo Ministério da Saúde, inflando a população ao pânico e relaxamento do isolamento social, que seria, segundo a OMS, a medida mais eficaz para diminuir a circulação do vírus. A notícia foi associada às cidades de Manaus e São Paulo. Casos como este, fortalecem a narrativa perpetrada pelos produtores de fake news e negacionistas, emplacando uma narrativa que reforça a retórica do pensamento de colmeia/bot (robô), de que tantas mortes não são por Covid-19.

Dessa forma, é nítido que a infodemia tem sido fortalecida no domínio público, e se ancora no direito a opinião resguardada pela lei. Essa livre expressão é a válvula de escape em momento de privação social. É relevante pontuar que as tecnologias e sua expansão, transferiram o polo massivo de produção de notícias, das mãos dos jornalistas para cidadãos comuns, em considerável escala. Isso, em virtude do barateamento relativo à produção e a disseminação de conteúdos duvidosos.

Em virtude da relação emocional com a informação e do pouco conhecimento seguida da insipiência nos conhecimentos referentes à checagem, surgem às agências de fact checking, com o objetivo de verificar informações, que, quando falsas, podem comprometer o debate público e mesmo a integridade das pessoas. Com destaque maior, as seguintes: Agência Lupa, Aos Fatos, Boatos.org, E-Farsas, Fato ou Fake e o Projeto Comprova - atuante em período eleitoral que conta com outras entidades do meio jornalístico. A elas são vinculadas algumas estratégias para a inserção do senso crítico e verificador:
  •   Recebeu uma notícia inédita, urgente ou com pedidos de compartilhamentos? Fique atento!
  •   Observe sempre a data e o contexto em que aquele conteúdo foi publicado.
  •   Duvide de sites estranhos e de cópias de jornais conhecidos.
  •   Cuidado com impostores, por isso, verifique a informação na fonte oficial.
  •   Leia além do título.
  •   Situações de pânico? Desconfie.
  •   Nem todo áudio é verdadeiro, não confie em tudo que você escuta.
  •   Fotos são facilmente adulteradas, não confie em tudo o que você ver.
  •   Na dúvida não compartilhe.
  1. A educação crítica é, nesse cenário, a defesa primeira, pois é na escola que habilidades e competências, como a capacidade crítica, podem ser desenvolvidas, elevando o potencial investigador, de modo a instigar a análise de conteúdos em contextos diversos, levando em conta, inclusive, que a sociedade está se (re)configurando.

    Estimular os estudantes a se direcionarem a fontes confiáveis, propiciando a eles conhecerem quem publica, se é respeitado, o que omite, a quem direciona e, principalmente o quão é subjetivo, no que diz respeito às parcialidades, passa a ser tarefa primordial para formação de cidadãos em mundo da cibercultura (LEVY, 1999).

    Portanto, a infodemia de fake news gera bolhas com percepções perigosas e que podem comprometer a integridade das pessoas, principalmente em tempos de pandemia. Assim, se por um lado as plataformas digitais nos entretêm, por outro, requer um pensamento crítico e ético a ser mediado, dentre outros espaços, desde cedo pelos atores escolares. A escola, nesse sentido, precisa ser ratificada como sendo um espaço privilegiado de formação baseada na educação crítica.
Referências

BICHARA, Marcelo. Sars-cov-2: Infodemia, pós-verdade e guerra híbrida. [Revista Estudos Libertários (REL), UFRJ,VOL.2.No3; ED.ESPECIAL No1] 1o semestre, 2020. Disponível em: <revistas.ufrj.br/index.php/estudoslibertarios/article/view/34123/19090>. Acesso em: 30 maio, 2020.
Disponível em: <www.bbc.com/portuguese/brasil-52584458>
Disponível em: <
www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/05/familia-abre-caixao-em-velorio-e-cinco-sao-
contaminados-por-covid-19-na-bahia.shtml>
FERRARI, Pollyiana. 
Como sair das bolhas. - 1a reimpr. - São Paulo: EDUC/Fortaleza: Armazém de Cultura, 2019.
KALIL, I. & SANTINI, R.M. Coronavírus, Pandemia, Infodemia e Política. Relatório de pesquisa. Divulgado em 01de abril de 2020. 21p. São Paulo/Rio de Janeiro: FESPSP/UFRJ. Disponível em: <https://www.fespsp.org.br/store/file_source/FESPSP/Documentos/Coronavirus-e-infodemia.pdf>. Acesso em: 30 maio, 2020.
LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Ed. 34, 1999.
SANTAELLA, Lúcia. A pós verdade é verdadeira ou falsa? Barueri, SP: Estação das Letras e Cores, 2018.

Por:
Lucinalva de Almeida Silva
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(Professora e Mestranda em Formação Docente e Práticas Interdisciplinares/Educação na UPE)page4image7988224 page4image7985728
Marcelo Silva de Souza Ribeiro
(Dr. em Educação e Prof. da UNIVASF e UPE)
Pesquisadores no Laboratório de Estudos e Práticas em Pesquisa-Formação (LEPPF). Instagram: @leppfsertao