sábado, 29 de junho de 2019

SOBRE O LIVRO “O QUE É CONSERVADORISMO”, DE ROGER SCRUTON




Marcelo Silva de Souza Ribeiro[1]


Em primeiro lugar, eu quero agradecer ao meu grande amigo Liércio Pinheiro por ter me apresentado as obras de Rogers Scruton e me provocado a conhecer esse pensador britânico. Aliás, ao longo desses anos, Lili (apelido carinhoso do amigo) sempre tem sugerido e indicado boas leituras.

Por ser iniciante em relação a obra de Scruton, procurei algo introdutório e comecei a leitura pelo livro “O que é conservadorismo”. Daí li alguns outros artigos acadêmicos e matérias em jornais disponíveis na internet. De modo específico, minha resenha estará situada na obra que acabei de citar.

Em geral, a minha impressão e o impacto da obra nos meus pensamentos foram positivos, pois serviu para esclarecer alguns entendimentos errôneos da minha parte em relação ao conservadorismo, mas também serviu para me identificar e ao mesmo me distanciar substancialmente desse movimento. Certamente há inúmeras passagens que discordo totalmente (como a parte que Scruton elogia Pinochet, mesmo as barbaridades cometidas, por impedir o avanço do comunismo no Chile das décadas de 60/70). 

Acho que um primeiro aspecto a ser levantado é que Scruton coloca o conservadorismo numa perspectiva plural, ou seja, que há vários modos do conservadorismo se expressar e que ele (Scruton) está mais interessado em apreender a doutrina conservadora do que abordar uma política partidária (embora faça várias referências ao seu contexto britânico). Penso que essa abertura ao abordar um “movimento”, possibilita diálogos e interações que se desdobram criativamente nas articulações com outros movimentos e tendências.

Essa tomada de posição em abordar o movimento conservador (e não a política partidária apenas) é interessante porque apreende algumas “essências” desse movimento. Se eu não estiver equivocado (e peço desculpas antecipadamente aos possíveis erros da minha parte), uma dessas “essências” diz respeito ao modo como as pessoas se vinculam na sociedade, sobretudo nas amizades, na autoridade e também em relação a importância das instituições, como a família e a propriedade, por exemplo. Obviamente que a questão do conservar, do manter e das tradições constituem o movimento e aí a valorização ao passado passa a ser algo crucial. E isso está no cerne das críticas do conservadorismo à modernidade porque esta vem rompendo e contribuindo com o esgarçamento das tradições, dos laços e valores, sobretudo a modernidade enquanto sociedade de consumo e o apelo neoliberal (a despeito das inúmeras associações – parciais, bem verdade – entre conservadorismos e liberalismo). Scruton chega a listar uma série de marcas problemáticas da modernidade (p. 205), dentre elas: a industrialização, a perda da convicção religiosa, a degradação da linguagem, o triunfo dos bens materiais sobre os espirituais, etc. Sobre as críticas à modernidade, destaco o seguinte trecho:

Os conservadores não estão preocupados apenas com a geração de riqueza. Então, será que eles voltarão sua atenção, como os socialistas fazem, para a distribuição? A resposta é sim, mas apenas indiretamente e somente por causa de determinada concepção sobre a propriedade privada (p. 172).

É interessante notar a convergência do conservadorismo com as posições de esquerda quanto as críticas à modernidade, sobretudo a sociedade de consumo. Contudo, a aproximação parece parar aí, pois o conservadorismo faz críticas a excessiva reprodução da riqueza e não a propriedade e as relações de classes. Além disso, o conservadorismo, pelo menos em sua doutrina, é fortemente desconfiado em relação as utopias do futuro (típicas do socialismo, por exemplo). Há uma máxima que se encaixa bem sobre isso que diz que nem tudo que é novidade é bom e nem tudo que é antigo é ruim. A questão, bem certo, seria saber o que e quando se deve mudar em nome de um futuro melhor e o que e quando se deve manter em nome de um passado importante. Esse diálogo temporal onde o presente seria a interseção e atualização (do passado e do futuro) parece ser algo interessante. Será que caberia aí uma contribuição valiosa dos conservadorismos no sentido de ser o outro lado da balança que se inclinaria para valorar o passado num mundo ávido por novidades?

Confesso que me reconheci identificado com o movimento conservador, na verdade cheguei a me ver enquanto ser no mundo com traços conservadores (embora também tenha me reconhecido totalmente diferente e sobre isso relatarei logo adiante um acontecimento do meu fórum familiar prosaico). 

Já tem algum tempo que venho estudando a obra de Hans George Gadamer (um discípulo de Heidegger) e o quanto este tem dado importância às tradições (e autoridade, a história e aos pré-conceitos) como possibilitadoras de conhecer o outro, o mundo... É claro que em um contexto totalmente diferente e que vai para o campo da filosofia hermenêutica. Além disso, tenho também dado muita atenção a relevância da rotina (manutenção, tradição e conservação) para os processos educativos e mesmo para o desenvolvimento humano. E isso não me faz um conservador no sentido estrito, mas me abre para reconhecer que o movimento conservador pode ter coisas interessantes (e não também) a serem ditas, inclusive para os movimento de esquerdas, onde mais me reconheço sendo (penso que seria interessante as esquerdas se abrissem mais para as tradições, para compreender melhor os elementos conservadores da nossa sociedade ou mesmo para possibilidade de hibridismos).

Quanto ao acontecimento familiar que serve como um exemplo do quanto me distancio do conservadorismo, estávamos nos preparativos de uma festa junina e minha esposa se queixava da falta de cooperação dos familiares dela, pois se sentia sobrecarregada em ter que dar conta das coisas. Disse para ela, em tom revoltado, que não aceitava aquilo de jeito algum. Daí, ela contra argumentou que a família, para ela, era muito importante e mesmo se sentindo “explorada”, se sentiu muito bem em poder servir.

Um ponto interessante é que o movimento conservador, e isso serve como esclarecimentos, não significa simplesmente uma paralisia ao passado (embora tenha um respeito profundo pelo passado, pela herança acumulada). Assim, o conservadorismo pressupõe também ajustes, reformas, mudanças, portanto. Tudo isso com cautela, é claro.

Tem algumas partes do livro que Scruton se dedica a discutir a relação entre conservadorismo e liberalismo. Ele entende que são mundos completamente diferentes, inclusive faz uma contundente crítica a ideia de liberdade individual porque esta, em seu limite, seria a própria ruptura dos laços tradicionais que sustentariam uma visão conservadora de mundo. Ainda sobre essas críticas, Scruton avança no sentido de questionar também o que ele chama de ficção dos direitos humanos, pois seriam outras formas de levar em consideração as acomodações dos laços societais. No limite, há uma crítica ao multiculturalismo também à medida que Scruton alude a inviabilidade de uma sociedade formada simplesmente por individualidades e suas diferenças. Para Scruton, o indivíduo existe não porque e quando ele se exalta em sua individualidade, mas porque ele se conforma (não de maneira resignativa, mas por adesão e amor) ao grupo e as instituições sociais. É claro que há pontos de interação entre o liberalismo e o conservadorismo, como a questão da propriedade privada e também em relação aos arranjos políticos e econômicos, mesmo que historicamente pontuais, como foi o caso de Margaret Thatcher (certamente há algumas integrações bizarras nessa integração).

Quanto as críticas propriamente ditas que faço, posso dizer que Scruton traz muitas vezes uma visão caricatural do socialismo, quase aquela ideia de uma sociedade totalmente uniforme. Da mesma forma que defende o capitalismo, dizendo que há várias maneiras do capitalismo se expressar poderia enxergar isso do socialismo (Scruton se posiciona ao capitalismo embora faça distinções de tipos de capitalismo e isso ele deveria fazer em relação ao socialismo). Isso sem falar de uma narrativa emprenhada de visão sobre a natureza humana fortemente carregada de metafísicas (fala muito de natureza humana como essências – talvez seja algo coerente com a própria visão conservadora).

Além disso, observo que ao longo da obra há inúmeros malabarismos retóricos para justificar a monarquia como regime político mais apropriado e até uma falta de compreensão em relação a países como o Brasil, onde reinam as desigualdades. Inclusive sobre isso tenho uma curiosidade: como fica para um conservador dar conta das desigualdades? Não desigualdades por causa de méritos individuais, mas desigualdades abissais e que foram produzidas por absurdos históricos, como é o caso da pobreza no Brasil de origem escancarada na escravidão? Considerar o capitalismo como regime apreciável destacando algumas sociedades (Inglaterra, por exemplo) sem levar em conta as relações de exploração entre países seria algo válido? Dando continuidade aos questionamentos, mas abordando agora a as transformações sociais principalmente as relações de gênero, como ficaria a questão do direito da mulher votar (sufragista) para os conservadores? Para eles (os conservadores), as mulheres nunca votariam porque iriam desestabilizar a família? Quando e quem decidiriam o que deve ser mudado ou não? Quem definiria que as mudanças seriam sentidas ou não como violência de um establishment?

Por fim, volto a dizer que ler Roger Scruton, a despeito das inúmeras discordâncias que se possa ter é um arejamento das ideias justamente pela abertura ao diferente. É um diferente de qualidade que chega até a gente. É um pensar claro de alguém que pensa diferente. Quem dera um dia aqueles que se chamam de conservadores entre nós alcance um patamar próximo a Scruton, e ultrapasse, ao menos alguns centímetros, certos ideólogos da vida. Afinal, o que vemos (com as devidas e importantes exceções) no cenário nacional em relação aos posicionamentos da direita (e aqui não se inclui apenas aqueles que se intitulam conservadores de direita) é de uma bizarrice e tacanhez incomensurável.

Sinceramente (e já disse isso antes em outro contexto), se a esquerda algumas vezes é rasa no Brasil, a direita consegue ser, em muitas situações, tosca. Espero verdadeiramente que o pensamento conservador (de qualidade) possa arejar e criar bons contraditórios em nossa sociedade e que também as universidades tenham espaços para pensamentos diferentes, em nome até dos pensamentos que se filiam mais às esquerdas. Aposto que isso poderia formar bons quadros, além de criar novos contornos de formações políticas para o Brasil.

Referência: 
SCRUTO, RogerO que é Conservadorismo. São Paulo: É realizações, 2015.


[1]Prof. do Colegiado de Psicologia da Universidade Federal do Vale do São Francisco.