segunda-feira, 7 de outubro de 2019

PSICOLOGIA E CIÊNCIA EM DISCUSSÃO - 5 Da mecânica à ecologia da ciência

PSICOLOGIA E CIÊNCIA EM DISCUSSÃO - 5
Da mecânica à ecologia da ciência


Prof. Marcelo Silva de Souza Ribeiro
Colegiado de Psicologia – Univasf.


Já faz muito tempo que Nietzsche havia identificado o problema da verdade como um dos pontos chaves da modernidade. Isso porque a questão da verdade atravessou (e atravessa) tanto a ideia de Deus como também de Ciência. Um dos desdobramentos a respeito do problema da verdade é conceber posições monoteístas ou politeístas, posições de intolerância para com o diferente ou de afirmação da diversidade. Certamente que esses pontos não se dão simplesmente de modo dicotômico, mas apontam para posições mais ou menos abertas ou fechadas para as diferentes formas de saberes e entendimentos do que seja ciência.

Mas antes de adentrarmos um pouquinho nessa conversa, vamos a máquina!

Numa certa ocasião, tive a oportunidade e o prazer de conhecer o Museu Ricardo Brenand, em Recife. Além da incrível experiência estética e histórica que o lugar proporciona, deparei-me numa das inúmeras salas com uma interessante coleção de máquinas, sobretudo relógios, caixas de músicas, globos giratórios e pêndulos. Muitas dessas máquinas eram dos séculos XVIII e XIX. 

Fiquei profundamente impactado com aquelas maquinarias de modo a imaginar o fascínio vivido por mulheres e homens daquele período. Realmente a máquina foi uma descoberta extraordinária e transformou o modo das pessoas compreenderem a realidade e atuarem no mundo. A máquina havia se tornado uma representação explicativa de orientação para humanidade. Estávamos na era do mecanicismo. Mesmo Deus foi visto como o grande arquiteto - aquele que criou as engrenagens perfeitas. Seria mesmo possível dizer que Deus era visto como o mecânico criador. O chamado paradigma mecanicista, para lembrar Kuhn (1996), revolucionou a ciência, sobretudo porque esta passou a usar modelos explicativos (e mesmo maquinários enquanto instrumentos científicos) para dar conta dos diversos fenômenos. O próprio ser humano era visto a partir da representação de máquina: o corpo, a sociedade e a mente.

Graças ao modelo mecanicista novos e diversos conhecimentos científicos foram produzidos, como é o caso da fisiologia, da mecânica dos corpos, dos atos reflexos e das dinâmicas funcionais da sociedade. E aqui a própria Psicologia viveu suas elaborações inspiradas no modelo do maquinário. Assim, a concepção “máquina” como modelo para o pensar possibilitou mais liberdade criativa e inventiva, autorizando o humano a se desvencilhar de grilhões que o prendiam a limitantes territórios do conhecimento.

A ciência ou o conhecimento mecanicista, a despeito de contundentes críticas e de reconhecidas limitações, pois reduz os fenômenos ao que cabe no modelo maquinário deixando escapar ou mesmo ignorando tudo aquilo que não é lhe possível caber, ainda tem sido importante em certas áreas, compondo, assim, a ecologia da ciência. Apesar de ter sido superado enquanto modelo clássico, o mecanicismo perdura e algo do seu legado constitui o corpus do conhecimento humano, como é o caso em áreas da anatomia e na própria mecânica dos corpos.

La no Museu de Brenand, diante daquelas maravilhosas máquinas, fiquei a imaginar o fascínio que foi (e em certa medida continua sendo nas atuais “roupagens” desses “brinquedos” humanos) para as pessoas daquela época e o impacto da máquina, como paradigma para ciência. 

Diante disso, eu fico a refletir sobre a pertinência em reconhecer a dimensão mecânica das coisas e, ao mesmo tempo, eu fico a avaliar o quanto um modelo pode também limitar outras possibilidades de compreensão dos fenômenos. Afinal, conceber o humano como uma máquina permite acessar certas compreensões (e produzir intervenções), mas deixar escapar outras tantas. 

A questão problemática então não parece estar situada no conhecimento que toma como inspiração certos modelos, mas tomar o próprio modelo como conhecimento soberano, como aquela verdade intolerante. A ecologia da ciência, ainda que seja uma possibilidade de modelo, pressupõe a convivência da diversidade no ato de conhecer e também as limitações desses atos. As ciências sempre trazem suas visões e como tais são sempre parciais. Assim, reconhecendo seus alcances e limitações podem entrecruzarem-se e, criativamente, conflitarem-se. 


Referência
KUHN, T. S. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 1996.