quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Finitude e docência



Como gostaríamos de ser lembrados enquanto ainda houver memória? Esta era a pergunta que os gregos antigos se faziam. Para eles, a compreensão da finitude era presente no cotidiano e o que importava não era a imortalidade, mas o impacto de suas ações na vida.
Algumas coisas são basilares a condição humana e marcam “linhas”, como a história coletiva, a cultura, a história do ser e do indivíduo. Estas linhas, foram chamadas “linhas de desenvolvimento” por Vygotsky. Ele identificava a filogênese (história espécie), a macrogênese (cultura), a ontogênese (história do ser) e a microgênese (história particular do indivíduo). Por muitas vezes, estas linhas se entrecruzam e são marcadas por certas “chamadas existenciais”.
As “chamadas existenciais” têm a ver com o que existe de mais básico a condição humana. Uma delas, por exemplo, tem a ver com a finitude da vida. Em toda história humana, em qualquer cultura ou na vida de qualquer indivíduo, houve sempre (e sempre haverá) algum momento que a finitude aparece ou apareceu como uma força que provoca reflexões, posturas, ações e perspectivas diante da existência.
Sendo leviano ao abordar tema de grande complexidade em um simples lampejo delimitado por este pequeno ensaio, diríamos que a questão da finitude é deveras importante em todas as linhas do desenvolvimento. Cremos que não há como escapar, mesmo que haja completa negação sobre o assunto (a negação é uma vã tentativa de fugir) como, por exemplo, a contemporaneidade excessivamente materialista, coisificante, mercantilizada e pragmática. Como diria o filósofo alemão, Martin Hidegger, somos seres para a morte. E nisto não há nada de macabro. Ao contrário, há um filosofar para a vida, para o saber viver, para o modo como estamos vivendo. Tudo isto, indubitavelmente, conduz a outra questão, que é a ética.
Sinteticamente, é possível, pois, dizer que ao assumirmos a questão da finitude como condição natural e inerente a existência, somos forçados a refletir sobre o modo de vida que levamos, sobre os valores que atribuímos as coisas, ao jeito que nos relacionamos, as nossas ações, etc. A ética, neste sentido, recupera o significado grego que quer dizer “morada”. A ética, portanto, é a morada do ser, é a própria possibilidade de ser humano no mundo e com os outros.
É importante, porém, um pequeno esclarecimento. Assumir a finitude não é uma questão de ser ateu ou não, não é uma questão de admitir que um dia irá morrer. A questão em assumir a finitude tem muito mais a ver com o modo como nos apegamos ou não as coisas e com a necessidade de querer controlar ou não a vida e as pessoas. Ao assumir a finitude, a vida passa a ser vivida com mais responsabilidade e com mais respeito.
Temos uma terrível mania de conduzir nossas vidas sem lembrarmos que há um fim. Aceitar o fim representa uma ética propiciadora para uma vida com menos desejo de controle, de opressão, de agressões demasiadamente desnecessárias, de inseguranças que buscam compensações via complexos de inferioridades... Como nos brinda o músico Paulinho Moska, “vamos começar colocando o ponto final, pelo menos já é um sinal de que tudo na vida tem fim.”
Admitimos que é demasiado atrasado ligar agora essa discussão com a questão da docência. Deveríamos ter introduzido alguma problemática sobre esses dois assuntos logo no início, mas o magnetismo das idéias se apoderou e exigiu seus próprios percursos. Porém, forçaremos um pouco a barra só para compor algumas (re)percussões entre a questão da finitude e sua ética com a docência em suas várias dimensões.
O professor centra sua atividade, sobretudo, na relação com os seus estudantes, seja na dimensão do ensino, da pesquisa ou da extensão. A qualidade da relação é o grande canal mediador que irá facilitar o processo ensino-aprendizagem (é claro que existem vários outros aspectos em jogo nesse processo e também há a competência técnica do professor, domínio do assunto, etc.). Sendo a relação um dos principais cernes que qualifica e respalda a atuação profissional do professor, a ética vai estar, queira não, permeando as construções de conhecimentos, as formações profissionais e as subjetivações dos estudantes.
Ao pensarmos na dimensão gestão, o professor universitário, particularmente para o nosso interesse, tem ainda outro agravante. Além de estar centrado na qualidade das relações organizacionais, lida também com a produção da cultura institucional. Uma cultura institucional universitária tem suas características próprias. Assim, uma universidade pública, por exemplo, não pode ser confundida com uma empresa privada, não deve ser conduzida meramente como instrumento político-partidário ou mesmo não presta a ser concebida como uma prisão nas formas como as relações de poder são estabelecidas (grupos que se digladiam e a força bruta através de intimidações que imperam).
Ao assumir a finitude e, consequentemente, a ética daí decorrida, o professor em suas dimensões não vive para se eternizar via o controle excessivo. A compreensão de que “tudo passa”, orienta a prática e a atitude do professor, relativizando a ideia de verdade única e imutável, deixando-o mais complacente com os múltiplos olhares, não caindo na ilusão de que é dono da disciplina que leciona, que descobriu a verdade na pesquisa, que é o mais sabido, que é o proprietário da instituição (pública), que domina e controla as relações das pessoas...
No fundo tudo pode até parecer ser ilusão (e é!), mas esse não é o problema. A nosso ver, o problema é não considerar que há finitude em termos existenciais. Isto pode contribuir para graves equívocos na forma de se viver, levando a incapacitação da vida. Quando ligamos essa discussão da finitude com a questão da docência (principalmente em suas várias dimensões), reconhecemos uma importância capital, sobretudo porque o professor é um profissional da relação.

Juazeiro / Petrolina, setembro de 2010.

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

GESTÃO SER MAIS – UMA QUESTÃO DE PODER (SER)


Um dos grandes legados de Paulo Freire foi ter pensado, agido e vivido a educação como possibilitadora para o SER MAIS do outro e de si mesmo. Esse SER MAIS, explicando de maneira bem resumida, seria a atualização das potencialidades do ser. Também, em outras palavras, pode significar a atualização da pessoa, o tornar-se cada vez mais humano, o desdobrar das possibilidades de ser, o construir-se na relação de abertura para o diferente consigo mesmo e com o mundo, na curiosidade prazerosa de aprender e no constante diálogo, que não presume nenhum tipo de dominação ou de anulação.
Se trouxermos esse legado freiniano para o campo da gestão (sobretudo da gestão educacional) vislumbraremos uma perspectiva da gestão pelo empoderamento[1]. Um tipo de gestão assim significa estar voltado para dispor a ordem e a dinâmica da organização no sentido de afirmar a criatividade, a inventividade, o desenvolvimento, a autonomia e a liderança das pessoas. No que diz respeito a questão do poder em um tipo de “gestão SER MAIS”, esta não estaria voltada para o domínio centralizador, para o abafamento das capacidades criativas e autônomas das pessoas.
A ideia da “gestão SER MAIS” tem tudo a ver com o que, certa feita, Caetano Veloso falou: “Gente foi feita para brilhar”. Assim, nesse tipo de gestão, os dispositivos administrativos estariam voltados para ajudar o “brilhar das pessoas” e quanto mais estas poderem brilhar, mais potente tenderá a ser a própria organização como um todo.
Uma pergunta pode “pular-aparecer” ao se pensar desse jeito: com tanto brilho entre as pessoas não poderia estar promovendo ou correndo o risco delas desenvolverem grandes egos, ciúmes excessivos ou coisas semelhantes, de modo que a crescente constelação (a famosa frase “muita estrela para pouca constelação”) imploda em um imenso buraco negro, que tudo suga e aniquila?
Tal pensamento só faria sentido se o “brilho” fosse estimulado em uma perspectiva de competição e nessa condição o que existiria em termos de relação não seria o empoderamento, mas a negação do outro como condição para o crescimento de si mesmo. No entendimento de Humberto Maturana, as sociedades atuais são mediadas pela hipertrofia da competição em que as pessoas contradizem a própria gênese da condição humana (que se funda a partir da relação amorosa), colocando em risco a viabilidade humana no planeta.
Na “gestão SER MAIS”, o brilhar do outro não ofusca a luz de si mesmo, mas alimenta. Isto se passa porque o poder vivido não é ameaçador e nem gera insegurança. O poder vivido não quer se cristalizar, não quer se perpetuar de maneira estática. O poder está centrado no devir. Então não há o embate para a anulação do outro ou o domínio para perpetuação de si no poder ou a manutenção a “ferro e fogo” de certo ponto de vista. É óbvio que os conflitos, as diferenças, as tensões e os embates existirão e serão partes importantes da “gestão SER MAIS” enquanto gestão que afirma o empoderamento, a criatividade, a autonomia e a superação como condições essenciais ou como características elementares.
Muito provavelmente uma “gestão SER MAIS” seja propícia a haver mais conflitos e tensões. Isto tende a se dar porque a “gestão SER MAIS” possibilita posicionamentos divergentes, o que é alérgico para um tipo de gestão do tipo opressora. Esta, pode buscar homogeneizar a organização e a pasteurizar as relações, sobrando muito pouco para os diferentes posicionamentos ou alteridades. Entretanto, na “gestão SER MAIS” o que prepondera é uma ética da alteridade. E mesmo no conflito de ideias e posições, o importante é a afirmação do outro enquanto diferente.
Uma gestão do tipo opressora pressupõe a arrogância de que é a melhor e, portanto, merece se perpetuar. Geralmente tem horror às possibilidades, às novidades. Aplaca ferozmente as lideranças insurgentes (ou potenciais) nas organizações, seja anulando mesmo ou cooptando-as para domesticá-las, adocicá-las. Há nesse sentido uma nítida diferença entre a gestão do tipo opressora, que se alinha com a estagnação e a “gestão SER MAIS”, que se baseia com a ideia de possibilidade.
Para falar sobre isso de outra forma, trazemos à baila a posição de Platão, que dizia que após a efetivação da república todas as possibilidades (novidades) devem desaparecer para não atrapalhar o equilíbrio. Em outro ângulo, o filósofo Heidegger aborda a possibilidade como algo mais importante do que a realidade (no sentido daquilo que já está pronto, que já se atualizou...).
O sentido de ser superado e de superar perpassa outro ponto da ética da “gestão SER MAIS”.
Mesmo correndo o risco da estranheza em aproximar essas ideias com aquilo que interpretamos de Trotsky, não poderíamos deixar de comentar aquilo que ele chamava de “revolução permanente”. Para Trotsky, a revolução só lograria êxito se ela não se satisfizesse com alguns avanços. A revolução teria de se expandir horizontalmente (para si ou para os outros) e verticalmente (em si mesmo e para si mesmo). A ideia de superação está contida aí, mesmo que defina a casos bem específicos.
A gestão SER MAIS estaria relacionada com o devir criativo, com a vontade do gestor e ou da gestão ser auto-superada. Para isto, estaria voltada para cultivar sempre o brilho dos outros. E nesse processo de facilitar o desenvolvimento do outro, o próprio desenvolvimento de si mesmo e da organização se dariam via a retroalimentação ou por sinergia.
Para finalizar, queremos apenas dizer que, no fundo, falamos aqui de poder. A questão não é abordar ou não, encarar ou não o poder. Isto não seria possível, até porque, como muitos já colocaram (F. Bacon, M. Foucault...) tudo é poder, toda relação é poder... A grande questão que devemos nos colocar é que tipo de poder queremos, é que tipo de poder fazemos, é que tipo de poder medeia a gestão, sobretudo a gestão educacional.

Juazeiro / Petrolina, setembro de 2010.



[1] Neologismo oriundo da palavra inglesa empowerment, que significa possibilitar ao outro ganhar/assumir/tornar o seu próprio poder pessoal

A Educação pela Pedra


Uma educação pela pedra: por lições;
Para aprender da pedra, freqüentá-la;
Captar sua voz inenfática, impessoal
[pela de dicção ela começa as aulas].
A lição de moral, sua resistência fria
Ao que flui e a fluir, a ser maleada;
A de poética, sua carnadura concreta;
A de economia, seu adensar-se compacta:
Lições da pedra [de fora para dentro,
Cartilha muda], para quem soletrá-la.

Outra educação pela pedra: no Sertão
[de dentro para fora, e pré-didática].
No Sertão a pedra não sabe lecionar,
E se lecionasse, não ensinaria nada;
Lá não se aprende a pedra: lá a pedra,
Uma pedra de nascença, entranha a alma.

Uma didática da invenção


1.
Para apalpar as intimidades do mundo é preciso saber:

a) Que o esplendor da manhã não se abre com faca
b) O modo como as violetas preparam o dia para morrer
c) Por que é que as borboletas de tarjas vermelhas têm devoção por túmulos
d) Se o homem que toca de tarde sua existência num fagote, tem salvação
e) Que um rio que flui entre 2 jacintos carrega mais ternura que um rio que flui entre 2 lagartos
f) Como pegar na voz de um peixe
g) Qual o lado da noite que umedece primeiro.
etc.
etc.
etc.
Desaprender 8 horas por dia ensina os princípios.

2.
Desinventar objetos. O pente, por exemplo.
Dar ao pente funções de não pentear. Até que
ele fique à disposição de ser uma begônia. Ou
uma gravanha.

Usar algumas palavras que ainda não tenham
idioma.

3.
Repetir repetir – até ficar diferente.
Repetir é um dom do estilo.

4.
No Tratado das Grandezas do Ínfimo estava
escrito:
Poesia é quando a tarde está competente para
dálias.
É quando
Ao lado de um pardal o dia dorme antes.
Quando o homem faz sua primeira lagartixa.
É quando um trevo assume a noite
E um sapo engole as auroras.

5.
Formigas carregadeiras entram em casa de bunda.

6.
As coisas que não têm nome são mais pronunciadas
por crianças.

7.
No descomeço era o verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá
onde a criança diz: Eu escuto a cor dos
passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não
funciona para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um
verbo, ele delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta, que é a voz
de fazer nascimentos –
O verbo tem que pegar delírio.

8.
Um girassol se apropriou de Deus: foi em
Van Gogh.

9.
Para entrar em estado de árvore é preciso
partir de um torpor animal de lagarto às
3 horas da tarde, no mês de agosto.
Em 2 anos a inércia e o mato vão crescer
em nossa boca.
Sofreremos alguma decomposição lírica até
o mato sair na voz .

Hoje eu desenho o cheiro das árvores.

10.
Não tem altura o silêncio das pedras.

11.
Adoecer de nós a Natureza:
– Botar aflição nas pedras
(Como fez Rodin).

12.
Pegar no espaço contigüidades verbais é o
mesmo que pegar mosca no hospício para dar
banho nelas.
Essa é uma prática sem dor.
É como estar amanhecido a pássaros.

Qualquer defeito vegetal de um pássaro pode
modificar os seus gorjeios.

13.
As coisas não querem mais ser vistas por
pessoas razoáveis:
Elas desejam ser olhadas de azul –
Que nem uma criança que você olha de ave.

14.
Poesia é voar fora da asa.

15.
Aos blocos semânticos dar equilíbrio. Onde o
abstrato entre, amarre com arame. Ao lado de
um primal deixe um termo erudito. Aplique na
aridez intumescências. Encoste um cago ao
sublime. E no solene um pênis sujo.

16.
Entra um chamejamento de luxúria em mim:
Ela há de se deitar sobre meu corpo em toda
a espessura de sua boca!
Agora estou varado de entremências.
(Sou pervertido pelas castidades? Santificado
pelas imundícias?)

Há certas frases que se iluminam pelo opaco.

17.
Em casa de caramujo até o sol encarde.

18.
As coisas da terra lhe davam gala.
Se batesse um azul no horizonte seu olho
entoasse.
Todos lhe ensinavam para inútil
Aves faziam bosta nos seus cabelos.

19.
O rio que fazia uma volta atrás de nossa casa
era a imagem de um vidro mole que fazia uma
volta atrás de casa.
Passou um homem depois e disse: Essa volta
que o rio faz por trás de sua casa se chama
enseada.
Não era mais a imagem de uma cobra de vidro
que fazia uma volta atrás de casa.
Era uma enseada.
Acho que o nome empobreceu a imagem.

20.
Lembro um menino repetindo as tardes naquele
quintal.

21.
Ocupo muito de mim com o meu desconhecer.
Sou um sujeito letrado em dicionários.
Não tenho que 100 palavras.
Pelo menos uma vez por dia me vou no Morais
ou no Viterbo –
A fim de consertar a minha ignorãça,
mas só acrescenta.
Despesas para minha erudição tiro nos almanaques:
– Ser ou não ser, eis a questão.
Ou na porta dos cemitérios:
– Lembra que és pó e que ao pó tu voltarás.
Ou no verso das folhinhas:
– Conhece-te a ti mesmo.
Ou na boca do povinho:
– Coisa que não acaba no mundo é gente besta
e pau seco.
Etc.
Etc.
Etc.

Maior que o infinito é a encomenda.

Manoel de Barros