quarta-feira, 31 de agosto de 2016

Lições de Isabela - II As plantas, a morte e as bonecas




Quem ensina aprende. 
Os adultos têm muito o que aprender com as crianças, mas é preciso ter "olhos", "ouvidos", "sentidos"... abertos e disponíveis.
Em um novo momento de estudo com Isabela, aos 8 anos e no segundo ano, tínhamos uma lição sobre o desenvolvimento das plantas e suas estruturas. O conteúdo do livro abordava os ciclos de desenvolvimento e também as estruturas dos seres vegetais, além das diversidades, como as plantas mas rasteiras, as árvores, os cactos, etc. 
Falávamos também de como os seres mudam a depender da fase que eles se encontram, como a sementinha que germina, que vira um broto, que nasce a primeira folha, que cresce, que aparece a flor e assim por diante. 
Comentei que esses processos, em certa medida, também acontecem com as pessoas. Ao dizer isso notei que Isabela virou os olhos e parou. Reparei que estava a refletir. Perguntei então o que pensava. Ela então disse que aceitaria crescer (deixar de ser criança), mas que não iria nunca parar de brincar de boneca, nunca iria abandonar suas bonecas. Sorri para ela e entendi o quanto ela experienciava essa lição. Isabela vivia o luto ao ter consciência sobre suas transformações e consequentes mortes, ou seja, estava deixando algumas fases, mas também vivia a abertura de outras vindouras.
O que parecia mais incomodar Isabela não era deixar de ser criança, como ela mesma disse, mas sim abandonar suas "amigas e filhas". Além disse, pude entender o quanto aquele assunto mexia com ela, aliás, acredito que todo assunto (conteúdo), quando devidamente significado, tem algo vivido, experienciado por aquele que aprende. E por vezes o vivido, o experienciado, não é nada aprazível, vem com angústia, com ansiedade...
Isabela terminou aquele momento sobre o desenvolvimento das plantas e foi para o seu quarto brincar com as bonecas.
Eu fiquei na sala a pensar sobre tudo aquilo. Disse para mim mesmo: “Acho que eu posso brincar!”


Lições de Isabela - I Pensamento crítico e o hambúrguer


No dia seguinte, Isabela, minha filha, teria uma avaliação de interpretação textual e ciências (as avaliações, acertadamente, eram interdisciplinares). Aos 8 anos, Isabela começava a vivenciar, de modo intensivo, algumas práticas mais típicas do processo de escolarização, como as avaliações mais formais.
Ela estudava meios de transporte e as mudanças ocorridas ao longo do tempo, como os bondes puxados a cavalo, o tempo dos bondes elétricos, os primeiros automóveis e os congestionamentos e poluições urbanas de hoje em dia.
À medida de ela ia lendo, em seu livro, os textos referentes aos vários tipos de transporte, conversávamos sobre as diferenças  e curiosidades de cada época em se tratando dos meios de transporte, obviamente.
Assim, a conversa fluía sobre lugares de primeira classe e segunda classe, velocidades de cada meio de transporte, a questão do conforto e mesmo da facilidade em ter acesso ou não. Em uma dessas conversas, Isabela observou que atualmente muitas pessoas têm mais carros do que antigamente. Nesse momento estávamos diante de duas figuras contrastantes em seu livro. Uma figura mostrava uma rua do início do século XX, onde havia alguns poucos carros e muitos pedestres, transparecendo atabalhoadas e confusas, possivelmente por conta da novidade do veículo motorizado. Na outra figura, mais contemporânea, havia um congestionamento monstruoso, com muitos carros e raros pedestres.
Ao fazer a constatação do acesso à propriedade do meio de transporte, no caso o carro, a questionei sobre o que seria melhor: aquela época com poucos carros ou hoje em dia com muitos carros?
Isabela ponderou e disse que ter carro é confortável e que antes era perigoso andar na rua, pois as pessoas ainda estavam se acostumando com os veículos motorizados. Acenei que ela estava correta, mas acrescentei que hoje em dia, por muitas pessoas terem carros, os congestionamentos são enormes e que termina por não adiantar ter um carro se não se pode sair do lugar. Ainda falei da poluição que tantos carros produzem. Foi a vez de Isabela concordar. Daí, questionei se haveria alguma outra alternativa melhor para a mobilidade e expliquei um pouco o sentido de transporte coletivo e mais sustentável do ponto de vista ambiental. Isabela também expressou entendimento e concordância.
Notei que o nosso diálogo tinha uma boa cadência, pois estávamos trocando pontos de vistas, concordando com algumas observações e trazendo novas contribuições (não que o não concordar com algo seja indesejável - ao contrário!). Naquele momento pontuei para Isabela que estávamos tendo uma conversa crítica, desenvolvendo um pensamento crítico. De imediato, Isabela perguntou o que seria o pensamento crítico. Tentei explicar que seria ter visões diferentes sobre a mesma coisa. Por exemplo: ter um carro é algo confortável, mas pode provocar congestionamentos e gerar poluição.
Sem pestanejar, Isabela disse que havia bem entendido. Da parte dela, assim falou: “Ah pai! Sei o que é! Por exemplo: comer hambúrguer faz mal, mas é gostoso!”

Depois dessa fiquei perturbado quanto aos meus papos sobre uma alimentação mais saudável! Quem manda mediar o desenvolvimento via um pensamento crítico e, consequentemente, autônomo!?

sexta-feira, 1 de abril de 2016

Experiências de Banca de TCC



Adoro participar das bancas de Trabalho de Conclusão de Curso – TCC, até mesmo nas “maratonas” das apresentações que sempre acontecem nos finais de semestres no curso de Psicologia da minha universidade (Univasf).  

A participação nessas bancas é, quase sempre, uma oportunidade impar de aprendizagem. Além, obviamente, de ser uma honra estar presente em momento ápice, que é uma defesa de TCC. Nesses momentos aprecio a produção intelectual e científica do aluno, na escrita e na parte oral, compartilho críticas com os colegas de banca e me deparo, muitas vezes, com questões importantes que me faz refletir sobre as práticas e também sobre o jeito de produzir conhecimento.

Recentemente (nessa última “maratona”) pude discutir, reiteradamente, dois aspectos, inter-relacionados, da produção do conhecimento via projetos de pesquisa. O primeiro dizia respeito a identificação ou não do campo empírico ou mesmo de grupos sociais nos projetos. Por exemplo: eticamente seria correto anunciar, no título e no corpo do trabalho, um estudo sobre “os estudantes de psicologia do 5º período da Univasf”? Estaria ferindo a ética no sentido de expor o lugar e mesmo um grupo social? 

O segundo aspecto dizia respeito a incapacidade de um estudo micro ser “generalizado”. Pegando o mesmo exemplo: ao pesquisar sobre “os estudantes de psicologia do 5º período da Univasf”, seria possível que os resultados pudessem interessar outros pesquisadores que abordariam estudantes de graduação da China?

Uma pequena observação: quando falo de “generalização” não estou me referindo, necessariamente, ao modelo neopositivista, mas sim a capacidade de um estudo de se comunicar, de ser transposto a outras realidades. Essa capacidade do estudo faz parte, no meu entender, da própria estética da ciência, dos seus rigores, independente de qual paradigma se refira.

Mas voltando aos aspectos discutidos na minha recente experiência das bancas, observo que o mais importante não é se há explicitação ou não do campo empírico ou dos grupos sociais. O que importa é se o objeto de estudo ou o corpus teórico metodológico exige (é lógico que estando atento as exposições desnecessárias). Imagine um estudo historiográfico e de cunho etnográfico que exige a identificação de uma comunidade?! Há, nesses casos, uma exigência do objeto, do quadro teórico e metodológico. 

Eu já vi, inclusive, trabalho perder sua riqueza na discussão justamente por causa de timidez em descrever o campo empírico - um receio em transgredir os suposto preceitos éticos (o estudo tratava, no caso, de uma empresa que foi pouco descrita para não ser revelada sua identidade).
Também observo que a questão não é desenvolver um estudo macro para se buscar melhor “generalizações” (sobre isso quero abordar, posteriormente, a questão de estudos quanti e quali). É possível alcançar boas transposições com estudos micros. O que seriam, por exemplo, dos estudos de caso? Ou melhor, da clássica pesquisa de Antônio Calos Ciampa, da psicologia social, que elaborou o conceito de “processo indentitário”?  Ciampa estudou as transformações identitárias vividas pela empregada doméstica da sua casa!

A questão é (de novo outra dimensão do rigor) a capacidade de transposição presente no trabalho. Afinal, não faz sentido um estudo ensimesmado, que não possa ser de interesse para outros.

Por fim, quero agradecer aos estudantes que me oportunizaram belas experiências de banca e aos colegas que tensionaram, debateram, dialogaram e produziram uma série de reflexões.

sexta-feira, 18 de março de 2016

Judicialização da vida cotidiana - torando a universidade




Ao trazer o tema da judicialização da vida cotidiana para o nível da reflexão, objetivo problematizar o contexto brasileiro no que diz respeito às suas instâncias de poder e os desdobramentos dos controles, em especial, no mundo acadêmico.

Em um primeiro momento, gostaria de situar as instâncias de poder que engendram a sociedade. O estado moderno, portanto, é composto pelos três poderes (o legislativo, o executivo e o judiciário). Sendo que o terceiro, por sua natureza, tem um papel mais reativo, no que diz respeito às suas ações de acomodamento, julgamento, ponderações, etc. De modo geral, cabem aos poderes executivo e legislativo um papel mais propositivo, que antecipa, adianta, executa e propõe as ações do estado e da sociedade.

Acontece que, no Brasil, a despeito das contradições e crises institucionais que vivemos, o poder judiciário tem ampliado seus espaços de ação e assumido papel propositivo.  Particularmente, entendo como uma acomodação que busca manter certa ordem social, uma vez que os outros poderes enfrentam graves dificuldades.

Não é por menos, considerando essa crise, que presenciamos ministério público demandando prisão de ex-presidente sem as devidas bases, órgãos de controle reorientado a vida das instituições, ações judiciais que buscam equacionar problemas de ordem pública que outrora caberiam aos órgãos mais executivos, etc. Nesse bojo, por exemplo, incidem sobre o campo educacional mandatos de segurança para matricular alunos por conta da idade / série, determinações para aprovar candidatos em concursos, professor respondendo processo por reprovar aluno e ordens para orientar a atividade docente, como é o caso da regulação sobre os diários de classe. Não que estas situações não sejam passíveis de receber colaborações do poder judiciário (e seus respectivos órgãos de controle), mas a questão principal se dá pelo modo como esses dispositivos são acionados, normalmente sem diálogos e sem entendimentos das especificidades, desconsiderando os saberes técnicos, históricos e experiências de quem os vivem. Sobre isso há vastos trabalhos, em geral inspirados no pensamento de Foucault, que analisa os exercícios de poder.

Esse contexto, no meu ponto de vista, tem criado um terreno propício para que se dê o fenômeno da judicialização da vida cotidiana. De maneira simplificada, entendo esse fenômeno como a invasão da vida privada de modo autoritário (é que claro que, muitas vezes necessária e bem intencionada essa “invasão” no que concerne à busca de uma ordem social e manutenção do estado de direito). Entendo ainda a "vida privada" englobando a vida interna das instituições, como é o caso do que é privado ao mundo acadêmico, à vida das universidades.
Antes de prosseguir deixo claro que, ao abordar essas questões de maneira encurtada, deixo várias pontas passíveis de lacunas, mas isso é o risco que assumo ao tratar de um assunto polêmico em curto espaço de comunicação.

Bem, a universidade tem também vivido essa situação, como é o caso recente da exigência dos professores apresentarem planejamento das atividades e seus relatórios. Até aí tudo bem, pois é importante e necessária a política do controle social e transparência da coisa pública. O problema é quando o poder excessivo do judiciário (e dos órgãos de controle) atua unilateralmente, desconhecendo as especificações, no caso, da vida acadêmica e de suas formas de funcionamento. A vida acadêmica, neste caso, é muito mais regida por um modus operandi artesanal e não no padrão de uma linha de produção, via modelo industrial. No caso dos PDs/PUDs (planos de disciplinas), que os professores passaram a ser obrigados a enviar a programação da disciplina do semestre seguinte ainda em plena finalização do semestre vindouro é algo que "tora" o professor e a universidade como um todo. Afinal, como planejar uma disciplina se o semestre não findou? Que tempo o professor tem de agregar novos elementos a disciplina (leitura de livros, textos, materiais didáticos)? Como atender essa exigência (que visa, no fundo, saber se o professor faz jus dos seus proventos) se não há tempo de planejar adequadamente? E o contrato pedagógico que só acontece nos primeiros encontros de aula e tão fundamental para o planejamento? Além disso, essa ótica imposta de fiscalizar a "linha de produção" do professor não seria incongruente com a vida acadêmica? Os órgãos de controle não estariam sendo autoritários quando impõem e exigem, sem ao menos procurar formas mais dialógicas e mesmo eficazes de fazer valer o controle social?

Os professores, sob a ameaça da deusa de olhos vedados irá acatar os ditames...mas será para “inglês vê”. E com isso a academia é torada!


Marcelo Ribeiro.