Prof. Marcelo Ribeiro
Colegiado de Psicologia
Universidade Federal do Vale do São Francisco - Univasf
Este texto visa
apresentar alguns argumentos sobre a ilegitimidade dos brados em prol do bônus
regional para ingresso de estudantes na Universidade Federal do Vale do São
Francisco – Univasf. Além disso, visa analisar as insustentáveis defesas
argumentativas dos grupos que proclamam tal proposta, revelando um modus operandi de uma tradicional
ideologia coronelesca-patrimonialista e a insurgente xenofobia à brasileira.
Antes
de mais nada é importante sublinhar que as chamadas políticas reparadoras,
portanto, inclusivas em sua perspectiva maior, são necessárias, sobretudo em um pais com
marcas profundas de desigualdades, como é o caso do Brasil (há que salientar
que existem diferenças fortes entre cotas e bônus, além de outros tipos de
políticas, suas intenções e amparos históricos). Assim, o bônus, como possibilidade em si, de
um tipo de política reparadora pode ter suas pertinências. O que será analisado
neste texto é a particularidade de uma proposta do bônus regional para a Univasf
e, principalmente, a gênese e o modus
operandi que o movimento em defesa do bônus perfilou.
Segundo
o dicionário Houaiss da língua portuguesa, “legitimação” (substantivo)
significa: ato pelo qual se regulariza o que não está de acordo com a lei; ato
de justificar; ação de pôr de acordo com a lei. E a palavra “legitimar” (verbo),
quer dizer reconhecer como autêntico, verdadeiro, razão de ser.
Como
é possível notar, tanto a legitimação quanto o ato de legitimar podem guardar o
sentido de emergir algo, mesmo não estando na lei, ou reforçar algo da própria
lei. Por outro lado, a ideia de legitimidade está profundamente arraigada no
parâmetro da autenticidade, da verdade e da razão de ser. Embora seja
melindroso tratar o que é verdade ou não, o campo da moral e mesmo da ética
sugerem caminhos. Afinal, o relativismo absoluto é incompatível com a vida em
sociedade. Em outras palavras, o fato de achar que algo é verdadeiro não nos dá
o direito de fazer ou impor o que quisermos.
Mas
vamos explorar um pouco mais esta questão partindo para o ponto privilegiado
deste texto, ou seja, a questão mesma da reivindicação do bônus regional para
estudantes de Petrolina (e também de Juazeiro – Bahia) ingressarem na Univasf.
Essa
reivindicação não tem nascedouro recente. Na verdade, suas sementes foram
plantadas por volta de 2010, quando a Univasf adotou o sistema SISU / ENEM como
meio de ingresso para os seus cursos de graduação. Além disso, a instituição adotou,
pioneiramente, o sistema de cotas, onde 50 % das vagas estavam destinadas a
alunos oriundos de escolas públicas (independente da região).
Já
naquela época, por conta dessa decisão da Univasf (e mesmo antes) houve uma
série de manifestações e pressões de políticos, donos de cursinhos e estudantes
para que a Universidade mantivesse seu próprio sistema de ingresso. Obviamente,
os interesses já estavam claros, ou seja, manter algumas vantagens para grupos
das duas cidades circunvizinhas.
Após
uma série de manifestações, a favor e contra (muitos estudantes se posicionaram
a favor do SISU/ENEM), a Univasf seguiu
o curso acertado desse tipo de ingresso que, além de democratizar o acesso, provocou
uma série de impactos positivos para as universidades e também para a educação
básica (há inúmeros documentos e pesquisas que comprovam e relatam esse fato).
Ainda
nesse período, o grande argumento disseminado era que iria haver uma invasão de
estudantes estrangeiros (diga-se de passagem, brasileiros de outros cidades e
regiões), alijando a oportunidade dos “filhos da terra” de terem acesso a Universidade
(na verdade, de olho no cobiçado curso de medicina). Os grandes promotores do
movimento contra a adoção do sistema o SISU/ENEM eram, sobretudo, donos de
cursinhos, alguns proprietários de colégios e certos políticos tradicionais da
região. Após sacramentar a decisão no Conselho Universitário (Conuni) a
respeito da adesão da Univasf ao sistema, uma página foi virada e o referido
movimento entrou em estado de latência.
Aproximadamente
5 anos depois, o movimento ressurgiu com nova roupagem. Dessa vez, explicitando
o bônus regional para estudantes de Petrolina e Juazeiro. Os argumentos
apresentados podem ser resumido em 5 pontos:
1. Um fator
relevante para que haja incremento do capital humano em uma região seria a
inclusão da maior proporção possível da população local na escola, em todos os
níveis de escolaridade;
2.
Favoreceria a inclusão de estudantes locais.
3. Criaria uma
barreira a injustiça (um sistema de protecionismo “aos
da casa”, ou seja, da região). Há
universidades, por exemplo,
que adotaram o
bônus regional e os estudantes desse lugar poderiam vir a Univasf e o
princípio da reciprocidade não estaria sendo respeitado;
4. Diminuiria a
quantidade de alunos da região que precisam estudar em outras localidades;
5.
Diminuiria a evasão dos estudantes ;
Esses
argumentos não conseguem ter sustentabilidade sob várias perspectivas, sejam
legais, morais, científicas ou políticas (justiça social). Vejamos algumas
dessas perspectivas:
a) A Univasf já está comprometida com políticas de
inclusão e sensível com o desenvolvimento regional. O sistema de inclusão,
nesse sentido, é complexo e envolve uma série de modalidades. As pesquisas têm
evidenciado mais as modalidades de cotas étnicas, sociais e constitucionais
(pessoas com deficiência). A Univasf é pioneira nas cotas sociais e precisaria
avançar mais nas cotas para pessoas com deficiência e nas cotas étnicas;
b) A Univasf já é uma Universidade regional no que diz
respeito à incorporação de estudantes da região do Vale do São Francisco. Desde
2010 cerca de 80% dos estudantes são da região. Esses dados, em 2014/2015
chegam a 94%! Mesmo no curso de medicina, a presença de estudantes da região
acompanha a média de muitas universidades federais. Ela atende, portanto, a
mesorregião.
c) O princípio da reciprocidade parece estar muito restrito
a algumas universidades, e mais: a alguns campi
de universidades (e não a todos os campi)
sob situações muito particulares que adoram o sistema de bônus regional. Além
disso, há a polémica em relação à
legalidade constitucional do
sistema de bônus regional para UNIVERISDADE PÚBLICA
FEDERAL. Neste caso, o que o outro faz, mesmo não estando de acordo, é razão
para se fazer?
d) Não há nenhuma evidência que o bônus regional
combateria a evasão, ainda mais no contexto da realidade “univasfiana” (onde a
maioria dos estudantes já é da região). O problema da evasão estaria muito mais
centrado em outros aspectos, como a questão das políticas de assistência e
permanência estudantil, com a questão do fortalecimento da educação básica ou
mesmo no que diz respeito à formação docente – sobre a fixação de estudantes de
medicina (o gold da questão) há
também inúmeros estudos que demonstram que o mais efetivo para que o médico
estabeleça seus laços na região são as residências médicas. Sob esse aspecto, a
Univasf já tem se destacado (são 7 residências – há perspectiva dulicar).
A
legitimidade, requer, como vimos, autenticidade, e esta, portanto, não tem meio
termo e não se sustenta no vazio. Além disso, um movimento legítimo requer
ética, o que parece muito distante para o caso aqui analisado.
Pois
bem, após a retomada do movimento da bonificação regional, algumas audiências e
eventos aconteceram nas cidades. Uma oportunidade interessante para o debate de
ideias e o diálogo. Entretanto, a vociferação por membros desse movimento
obnubilou qualquer oportunidade de uma relação dialógica.
Em
declaração dada a mídia local um dos vereadores apologista do movimento disse
que “50% do conselho da Univasf pensa que é Deus e os outros 50% tem certeza
que é”, como forma de intimidar os representantes do Conuni para votar a favor
da bonificação. Nesse caso, chamar os conselheiros de “Deuses” não é só uma
afronta pessoal a cada membro da comunidade universitária, mas é, acima de
tudo, uma tentativa (arrogante) de intimidar a autonomia universitária. Tal
postura parece ter se propalado na importante Casa do Povo de Petrolina. Em um
“blog” local foi feita a seguinte publicação:
“Os vereadores Alvorlande Cruz, PRTB, e
Dr. Pérsio Antunes, PMDB, endureceram o discurso contra a Universidade Federal
do Vale do São Francisco (Univasf) na defesa do bônus para que os alunos da
região possam ingressar na instituição com mais facilidade. Alvorlande informou
que enquanto o Conselho Universitário não realizar a reunião que terá como uma
das pautas, a discussão para a implantação do bônus na Univasf, barrará todas
as matérias destinadas à instituição na Comissão de Justiça e Redação da Câmara
de Vereadores”.
“Como membro a Comissão, já acertei com o
meu colega de Colegiado, vereador Pérsio Antunes, para não andarmos com os
projetos ligados à Univasf. Precisamos da aprovação com urgência do bônus da
Univasf para nossos estudantes, sem isso nada da universidade que chegar pra
gente terá andamento', ressaltou o vereador”.
Essa
amostra revela que a Universidade Federal foi atacada frontalmente no que
existe de mais caro em sua institucionalidade democrática. Para completar o
desfile de arrogâncias, inverdades e desrespeitos, apresentamos ainda três
situações que se passaram nos debates públicos.
a)
Um vereador, ao ouvir que poderia ser até interessante bonificar estudantes de
escolas públicas da região, a partir das cotas sociais já existentes (50% das
vagas de graduação da Univasf são reservadas para alunos oriundos de escolas
públicos de todo o Brasil), disse que era injusto para as escolas particulares
– isto revela a quem defende e quais são os seus reais interesses;
b)
Uma professora, que é dona de um dos cursinhos patrocinadores do movimento,
defendendo explicitamente bônus para o curso de medicina, e dizendo que o
movimento é legítimo, usou como exemplo sua suposta história de vida para
ratificar o quanto o sertanejo é vítima. Ela disse que, embora tenha ficado em
1o lugar na prova didática, para um concurso docente na Univasf,
caiu para o 6o lugar por causa da prova de títulos. Ela alegou que,
sendo pobre não teve oportunidade de se qualificar e, por isso, não logrou
oportunidade de disputar as vagas com os de fora. Entretanto, a referida
professora se esqueceu de dizer que os dois candidatos aprovados na época, e
que disputaram vaga com ela, um era do município de Floresta - PE e a outra de Petrolina
– PE. A professora se esqueceu também de informar que ela mesma fez sua
graduação em Letras em Belém do São Francisco, ou seja, fora do eixo Petrolina-Juazeiro,
o que, em sua lógica, invalidaria sua formação fora desse eixo. A citada
professora, além do modo pouco ético de se referir às pessoas as quais ela
pouco conhece, não considera a trajetória desses profissionais e de seus
esforços para alcançarem chegar à aprovação do referido concurso. Isso é grave
e demonstra o “vale-tudo” para ganhar algo.
c) A
explanação do pró-reitor de ensino, demonstrando que 94% das vagas das
graduações da Univasf estavam preenchidas por estudantes da região (incluindo
aí boa parte sendo de Juazeiro e Petrolina), foi entrecortada com falas de estudantes
seguidores que bradaram dizendo que os dados apresentados eram mentirosos.
A
clara demonstração de intransigência, intolerância e mesmo virulência nos atos
demostra o modus operandi desses
políticos, alguns empresários e seus séquitos. Querer impor interesses
claramente privatistas, sobretudo de olho no curso de medicina, justamente
porque criaria uma boa reserva de mercado, utilizando argumentos populistas em
defesa dos “coitados sertanejos” é, no mínimo, ilegítimo.
Isso
revela uma ideologia coronelesca-patrimonialista à medida que desrespeita a institucionalidade
democrática, querendo impor interesses espúrios, ou seja, que a Universidade
Pública Federal seja vantajosa a esses grupos privados. Ademais, insurge uma espécie de xenofobia à
brasileira quando esse movimento alude barrar brasileiros em nome de um suposto
discurso do sertanejo-vítima. O interessante e o bizarro de tudo isso é que, em
nenhum momento, nem esses políticos e nem esses empresário, saíram em defesa da
qualidade de escola pública.
O
bônus regional, portanto, na particularidade que se apresenta para Univasf, não
é legítimo. Porém, não só ilegítimo para universidade, mas também uma afronta
para a sociedade regional e brasileira.
Além
de evidenciar a ilegitimidade desse processo, o “caso Univasf” expressa, apesar
de suas particularidades, uma insurgência nacional de interesses privatistas
(em detrimento do público), uma postura da intolerância e de relações
autoritárias. Parece que estamos vivendo um momento muito delicado, onde as
institucionalidades democráticas, duramente construídas e ainda por se
consolidar em muitas situações, se encontram ameaçadas por setores da sociedade
que voltam a mostrar suas garras.
Este
caso vivido no contexto da Univasf expressaria, portanto, um sinal, um sintoma
social de ameaça às institucionalidade democráticas do Brasil? Em um período de
fragilidades políticas e esgarçamentos
de conquistas sociais, os interesses privatistas estariam ganhando
espaços? E a educação pública, gratuita e de qualidade, como ficaria?