Por Marcelo Ribeiro
Muito se fala sobre o poder. Assim, há o poder nas organizações políticas, o poder nos órgãos públicos e privados, o poder nos cargos de chefias, o poder na relação professor – estudante, o poder nas relações humanas em geral... Mas qual é mesmo a questão do poder? Qual o problema do poder para a humanidade? Para mim, o poder não é o problema. O poder é algo inevitável das e nas relações humanas. Constitui a própria relação, no entender, por exemplo, de Foucault. Mas então o que tanto preocupa os humanos em relação ao poder?
Ainda seguindo uma visão pessoal do que tenho experienciado e interpretado sobre o poder, posso dizer que é algo, apesar de constituidor e inevitável, que deve ser visto de maneira plural e com cuidado. Não concebo o poder no singular. Ao mesmo tempo em que há formas variadas de poder, penso que seja necessário ter certa atitude e postura, enfim, ter uma ética em relação ao poder, ou aos tipos de poder.
Para se pensar um pouco melhor sobre atitude e postura em relação ao poder, há a diferença entre a imposição e a influência. Darei dois exemplos dessa diferença. Em um primeiro, seria um tipo de chefe que impõe aos seus colegas de trabalho uma determinada orientação e outro que mostra a importância e pertinência da orientação. Em um segundo exemplo, seria um tipo de professor que lida com os conteúdos sem estabelecer uma relação de vínculo com seus alunos e outro que estabelece um diálogo com os seus estudantes para que os conteúdos possam fazer sentido aos mesmos. São duas atitudes e posturas distintas entre esses chefes e professores. A primeira é seca, determina e não há muito que se questionar. É simplesmente acatar. A segunda traz outras implicações, tais como o diálogo, a racionalidade e a participação na tomada de decisão.
Sou deveras inclinado a defender a segunda postura e atitude como exemplo de cuidado que devemos ter a respeito do poder. Essa defesa assumida tem como base toda uma tradição filosófica e científica, embora não tenha o mesmo respaldo em termos de tradição e história social. Por exemplo, o filósofo Kant acreditava que a verdade (aqui traduzida como uma orientação emitida pelo chefe de um setor, para dar sequência ao exemplo dado) poderia ser desejada. Jean Piaget, prodigioso biólogo que investigou a origem do desenvolvimento do conhecimento humano dizia, em seus estudos sobre a moral, que a noção de certo e errado e as tomadas de decisões são elaboradas em grande medida pela capacidade racional dos sujeitos. Assim, ao exercer a influência para orientar comandos, o chefe de um setor estabelece diálogo com os seus colegas, trabalha a racionalidade e pertinência das ações, aborda tudo isso de maneira participativa justamente para que todos se apropriem das orientações e sejam autônomos e não autômatos nas orientações. É aí que aparece outra coisa importante, que é a questão da autonomia.
O poder e autonomia têm uma relação de desdobramento. A depender do modo como o poder seja exercido ele pode constituir relações geradoras de automonia, ou melhor, de sujeitos autônomos ou, o contrário, autômatos. Ives de La Talle, seguidor de Piaget, argumenta que relações autoritárias (ou mesmo regimes autoritários) podem trazer dificuldades para o desenvolvimento intelectual e que sistemas democráticos, onde há participação, podem ajudar. Isto porque nas relações autoritárias não há espaço para a argumentação, para o questionamento, para a troca, para a participação. A existência de autonomia implica sempre em um tipo específico de poder que constitui as relações, enquanto que o automatismo implica outro tipo de poder constituidor.
Apesar de não ser tão corrente em nossas tradições e história a postura e a atitude que visa influenciar os sujeitos a seguirem certas orientações, há preciosos exemplos. É o caso do presidente da Philips no Brasil, Marcos Bicudo, que não tem mesa própria. Todos usam as mesas e utensílios de escritórios que estiverem disponíveis. Isto revela também uma perspectiva de horizontalidade na empresa sem necessidade de demarcar territórios e impor posições de chefias (na matéria da Folha de São Paulo do dia 31 de outubro de 2010, caderno “mercado – B2, foi abordado o uso racional dos recursos).
É importante não confundir a influência aqui abordada enquanto prática de uma ética com aquela outra, muitas vezes utilizada pelo marketing, que visa criar necessidades de mercado ou induzir comportamentos/pensamentos aos sujeitos. A grande diferença é que a primeira se dá de maneira consciente, construída via a participação. Enquanto que a segunda não. Esta é totalmente induzida através de mensagens subliminares e não adota o princípio do diálogo.
Outra palavra chave aparece para ajudar a distinguir melhor modos diferentes de se lidar com o poder – diálogo. Nas atitudes e posturas mediadas pelo autoritarismo, geradoras de automatismos e que é um tipo de poder constituidor de relações, não há diálogo. O que existem são consignas ou, no máximo, monólogos. O diálogo é inerente a participação e a autonomia. Nas relações constituídas por um tipo de poder que porta a marca do diálogo, o outro é afirmado em sua diferença e privilegiado justamente por isso. A possibilidade, portanto, da parceria acontece porque o outro pode ser outro na relação. Ele não é anulado, ele não é neutralizado, ele não é apagado, ele não é calado. O outro é chamado, é apreciado, é confrontado, é visto como possibilidade de mudança, de ser “afetante” e afetado. A própria etimologia da palavra dia(de)-logos, significa relação de sentidos, sentidos diferentes que se relacionam, que se interagem. Assim, há a ideia de díade, ou seja, de relação e há também a ideia de logos como sentido.
Ao contrário do que é apregoado por alguns, o poder não leva necessariamente a solidão. É claro que as pessoas públicas precisam saber lidar com o que é da sua dimensão pública e da sua dimensão privada. Mas a depender do tipo de poder, o sujeito se encaminha para o isolamento ou para a ligação. O poder que leva ao isolamento é aquele que nega justamente o diálogo, é um poder autoritário por isso. Enquanto que o poder que afirma o outro na relação leva a ligação. Poder nesse sentido é ligação. É um poder que liga, que dialoga.
Poderia até ser pensado o diálogo como a antítese do autoritarismo. Este, por sua essência, é a própria negação do diálogo, sua impossibilidade fundante. Eminente pensador das ciências humanas, sobretudo em relação a psicologia, Erich Fromm, avaliava que o autoritarismo seria uma maneira de exercer o poder e que estaria profundamente associada a um jeito inseguro de ser que busca uma compensação via o excessivo controle externo (ver os livros “Medo à liberdade” e “Análise do homem”).
Nesse sentido, é possível pensar que o poder marcado pela imposição, pelo autoritarismo, negador de diálogo e gerador de sujeitos autômatos pode ser até prático em termos de efeitos rápidos de controle. Afinal, o servo obedece ao seu senhor. Entretanto, este “obedecer” se dá via a submissão, via a ameaça, via o medo e via a punição. Ora, a punição (e também medo – o que não deixa de ser uma forma punidora de estabelecer relações) como controle é uma das formas menos eficientes de modelar comportamentos, já dizia o pai do comportamentalismo, Skinner (um “humanizador” e crítico mordaz aos processos educativos que se baseavam preponderantemente na punição dos escolares como forma de controlar seus comportamentos e induzir à aprendizagem).
A submissão, a ameaça, o medo e a punição, são características de um tipo de poder que pode ser adjetivado como autoritário. Apesar de um controle sobre os sujeitados, seus efeitos são imprevisíveis e não há aderência dos mesmos no que se referem as suas tarefas. Assim, a revolta desses sujeitados subjaz, a energia reprimida força escapes muitas vezes incontroláveis e o desejo por mudança é inevitável. Quando a ameaça ou o sistema punitivo desaparece, o comportamento que havia também desaparece junto.
O contrário se dá quando o tipo de poder é marcado pela influência, pela participação e pelo diálogo - o poder dialógico. O controle é interno porque há auto-regulação dos sujeitos que está em constante interação e mesmo que o chefe não esteja mais presente, as orientações, ou seja, os projetos são mantidos porque são desejados. É o que acontece também em uma sala de aula. Nesse caso, mesmo que o professor não esteja presente na classe, os estudantes mantêm seus objetivos e interesses centrados no processo de aprendizagem.
A partir daí surge outro aspecto sobre o poder, que é o egoísmo de sua perpetuação ou o amor de sua superação. O poder dialógico, não quer sua perpetuação porque custaria a negação do outro em prol da sua manutenção. O poder dialógico quer justamente a sua superação porque visa a autonomia do outro, visa o empoderamento do outro. Já o poder autoritário é perverso porque uso o seu poder para a manutenção do próprio poder, para subordinação do outro, impedindo o seu processo de empoderamento. É no egoísmo do poder autoritário que reside sua perversidade, pois é lá que se nega o outro em nome de um “eu” agigantado.
Entender, portanto, a pluralidade do poder e a sua necessidade do cuidado, implica em se ter uma relação com poder de um modo menos preconceituoso, mais aberto e também mais prudente. Assim, por tudo isso, concebo importante desenvolver práticas cuidadosas para lidar com o poder. Isto implica em pensar em uma educação que ajude a preparar as pessoas a lidarem com as questões inerentes do poder. Nesse sentido, uma formação, seja ela da educação básica ou mesmo profissional em nível universitário, deve contemplar, transversalmente, ou seja, em todo o seu currículo, elementos da ética de uma maneira não só teórica, mas, sobretudo prática. Mas isto será uma discussão para outro momento.
Campina Grande, 30 de dezembro de 2010.