segunda-feira, 28 de setembro de 2015

Por que o bônus regional é ilegítimo? O caso Univasf

Prof. Marcelo Ribeiro
Colegiado de Psicologia
Universidade Federal do Vale do São Francisco - Univasf



Este texto visa apresentar alguns argumentos sobre a ilegitimidade dos brados em prol do bônus regional para ingresso de estudantes na Universidade Federal do Vale do São Francisco – Univasf. Além disso, visa analisar as insustentáveis defesas argumentativas dos grupos que proclamam tal proposta, revelando um modus operandi de uma tradicional ideologia coronelesca-patrimonialista e a insurgente xenofobia à brasileira.

Antes de mais nada é importante sublinhar que as chamadas políticas reparadoras, portanto, inclusivas em sua perspectiva maior,  são necessárias, sobretudo em um pais com marcas profundas de desigualdades, como é o caso do Brasil (há que salientar que existem diferenças fortes entre cotas e bônus, além de outros tipos de políticas, suas intenções e amparos históricos).  Assim, o bônus, como possibilidade em si, de um tipo de política reparadora pode ter suas pertinências. O que será analisado neste texto é a particularidade de uma proposta do bônus regional para a Univasf e, principalmente, a gênese e o modus operandi que o movimento em defesa do bônus perfilou.

Segundo o dicionário Houaiss da língua portuguesa, “legitimação” (substantivo) significa: ato pelo qual se regulariza o que não está de acordo com a lei; ato de justificar; ação de pôr de acordo com a lei. E a palavra “legitimar” (verbo), quer dizer reconhecer como autêntico, verdadeiro, razão de ser.

Como é possível notar, tanto a legitimação quanto o ato de legitimar podem guardar o sentido de emergir algo, mesmo não estando na lei, ou reforçar algo da própria lei. Por outro lado, a ideia de legitimidade está profundamente arraigada no parâmetro da autenticidade, da verdade e da razão de ser. Embora seja melindroso tratar o que é verdade ou não, o campo da moral e mesmo da ética sugerem caminhos. Afinal, o relativismo absoluto é incompatível com a vida em sociedade. Em outras palavras, o fato de achar que algo é verdadeiro não nos dá o direito de fazer ou impor o que quisermos.

Mas vamos explorar um pouco mais esta questão partindo para o ponto privilegiado deste texto, ou seja, a questão mesma da reivindicação do bônus regional para estudantes de Petrolina (e também de Juazeiro – Bahia) ingressarem na Univasf.

Essa reivindicação não tem nascedouro recente. Na verdade, suas sementes foram plantadas por volta de 2010, quando a Univasf adotou o sistema SISU / ENEM como meio de ingresso para os seus cursos de graduação. Além disso, a instituição adotou, pioneiramente, o sistema de cotas, onde 50 % das vagas estavam destinadas a alunos oriundos de escolas públicas (independente da região).

Já naquela época, por conta dessa decisão da Univasf (e mesmo antes) houve uma série de manifestações e pressões de políticos, donos de cursinhos e estudantes para que a Universidade mantivesse seu próprio sistema de ingresso. Obviamente, os interesses já estavam claros, ou seja, manter algumas vantagens para grupos das duas cidades circunvizinhas.

Após uma série de manifestações, a favor e contra (muitos estudantes se posicionaram a favor do SISU/ENEM), a Univasf  seguiu o curso acertado desse tipo de ingresso que, além de democratizar o acesso, provocou uma série de impactos positivos para as universidades e também para a educação básica (há inúmeros documentos e pesquisas que comprovam e relatam esse fato).

Ainda nesse período, o grande argumento disseminado era que iria haver uma invasão de estudantes estrangeiros (diga-se de passagem, brasileiros de outros cidades e regiões), alijando a oportunidade dos “filhos da terra” de terem acesso a Universidade (na verdade, de olho no cobiçado curso de medicina). Os grandes promotores do movimento contra a adoção do sistema o SISU/ENEM eram, sobretudo, donos de cursinhos, alguns proprietários de colégios e certos políticos tradicionais da região. Após sacramentar a decisão no Conselho Universitário (Conuni) a respeito da adesão da Univasf ao sistema, uma página foi virada e o referido movimento entrou em estado de latência.

Aproximadamente 5 anos depois, o movimento ressurgiu com nova roupagem. Dessa vez, explicitando o bônus regional para estudantes de Petrolina e Juazeiro. Os argumentos apresentados podem ser resumido em 5 pontos:

1. Um fator relevante para que haja incremento do capital humano em uma região seria a inclusão da maior proporção possível da população local na escola, em todos os níveis de escolaridade;
2. Favoreceria a inclusão de estudantes locais.
3. Criaria  uma  barreira  a  injustiça (um sistema de protecionismo “aos da casa”, ou seja, da região). Há  universidades, por exemplo,  que  adotaram  o  bônus regional e os estudantes desse lugar poderiam vir a Univasf e o princípio da reciprocidade não estaria sendo respeitado;
4.  Diminuiria a quantidade de alunos da região que precisam estudar em outras localidades;
5. Diminuiria a evasão dos estudantes ;


Esses argumentos não conseguem ter sustentabilidade sob várias perspectivas, sejam legais, morais, científicas ou políticas (justiça social). Vejamos algumas dessas perspectivas:

a)     A Univasf já está comprometida com políticas de inclusão e sensível com o desenvolvimento regional. O sistema de inclusão, nesse sentido, é complexo e envolve uma série de modalidades. As pesquisas têm evidenciado mais as modalidades de cotas étnicas, sociais e constitucionais (pessoas com deficiência). A Univasf é pioneira nas cotas sociais e precisaria avançar mais nas cotas para pessoas com deficiência e nas cotas étnicas;

b)     A Univasf já é uma Universidade regional no que diz respeito à incorporação de estudantes da região do Vale do São Francisco. Desde 2010 cerca de 80% dos estudantes são da região. Esses dados, em 2014/2015 chegam a 94%! Mesmo no curso de medicina, a presença de estudantes da região acompanha a média de muitas universidades federais. Ela atende, portanto, a mesorregião.

c)     O princípio da reciprocidade parece estar muito restrito a algumas universidades, e mais: a alguns campi de universidades (e não a todos os campi) sob situações muito particulares que adoram o sistema de bônus regional. Além disso, há  a polémica em relação  à  legalidade  constitucional  do  sistema  de  bônus regional para UNIVERISDADE PÚBLICA FEDERAL. Neste caso, o que o outro faz, mesmo não estando de acordo, é razão para se fazer?

d)    Não há nenhuma evidência que o bônus regional combateria a evasão, ainda mais no contexto da realidade “univasfiana” (onde a maioria dos estudantes já é da região). O problema da evasão estaria muito mais centrado em outros aspectos, como a questão das políticas de assistência e permanência estudantil, com a questão do fortalecimento da educação básica ou mesmo no que diz respeito à formação docente – sobre a fixação de estudantes de medicina (o gold da questão) há também inúmeros estudos que demonstram que o mais efetivo para que o médico estabeleça seus laços na região são as residências médicas. Sob esse aspecto, a Univasf já tem se destacado (são 7 residências – há perspectiva dulicar).


A legitimidade, requer, como vimos, autenticidade, e esta, portanto, não tem meio termo e não se sustenta no vazio. Além disso, um movimento legítimo requer ética, o que parece muito distante para o caso aqui analisado.

Pois bem, após a retomada do movimento da bonificação regional, algumas audiências e eventos aconteceram nas cidades. Uma oportunidade interessante para o debate de ideias e o diálogo. Entretanto, a vociferação por membros desse movimento obnubilou qualquer oportunidade de uma relação dialógica.

Em declaração dada a mídia local um dos vereadores apologista do movimento disse que “50% do conselho da Univasf pensa que é Deus e os outros 50% tem certeza que é”, como forma de intimidar os representantes do Conuni para votar a favor da bonificação. Nesse caso, chamar os conselheiros de “Deuses” não é só uma afronta pessoal a cada membro da comunidade universitária, mas é, acima de tudo, uma tentativa (arrogante) de intimidar a autonomia universitária. Tal postura parece ter se propalado na importante Casa do Povo de Petrolina. Em um “blog” local foi feita a seguinte publicação:

“Os vereadores Alvorlande Cruz, PRTB, e Dr. Pérsio Antunes, PMDB, endureceram o discurso contra a Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf) na defesa do bônus para que os alunos da região possam ingressar na instituição com mais facilidade. Alvorlande informou que enquanto o Conselho Universitário não realizar a reunião que terá como uma das pautas, a discussão para a implantação do bônus na Univasf, barrará todas as matérias destinadas à instituição na Comissão de Justiça e Redação da Câmara de Vereadores”.

“Como membro a Comissão, já acertei com o meu colega de Colegiado, vereador Pérsio Antunes, para não andarmos com os projetos ligados à Univasf. Precisamos da aprovação com urgência do bônus da Univasf para nossos estudantes, sem isso nada da universidade que chegar pra gente terá andamento', ressaltou o vereador”.


Essa amostra revela que a Universidade Federal foi atacada frontalmente no que existe de mais caro em sua institucionalidade democrática. Para completar o desfile de arrogâncias, inverdades e desrespeitos, apresentamos ainda três situações que se passaram nos debates públicos.

a) Um vereador, ao ouvir que poderia ser até interessante bonificar estudantes de escolas públicas da região, a partir das cotas sociais já existentes (50% das vagas de graduação da Univasf são reservadas para alunos oriundos de escolas públicos de todo o Brasil), disse que era injusto para as escolas particulares – isto revela a quem defende e quais são os seus reais interesses;

b) Uma professora, que é dona de um dos cursinhos patrocinadores do movimento, defendendo explicitamente bônus para o curso de medicina, e dizendo que o movimento é legítimo, usou como exemplo sua suposta história de vida para ratificar o quanto o sertanejo é vítima. Ela disse que, embora tenha ficado em 1o lugar na prova didática, para um concurso docente na Univasf, caiu para o 6o lugar por causa da prova de títulos. Ela alegou que, sendo pobre não teve oportunidade de se qualificar e, por isso, não logrou oportunidade de disputar as vagas com os de fora. Entretanto, a referida professora se esqueceu de dizer que os dois candidatos aprovados na época, e que disputaram vaga com ela, um era do município de Floresta - PE e a outra de Petrolina – PE. A professora se esqueceu também de informar que ela mesma fez sua graduação em Letras em Belém do São Francisco, ou seja, fora do eixo Petrolina-Juazeiro, o que, em sua lógica, invalidaria sua formação fora desse eixo. A citada professora, além do modo pouco ético de se referir às pessoas as quais ela pouco conhece, não considera a trajetória desses profissionais e de seus esforços para alcançarem chegar à aprovação do referido concurso. Isso é grave e demonstra o “vale-tudo” para ganhar algo.

c) A explanação do pró-reitor de ensino, demonstrando que 94% das vagas das graduações da Univasf estavam preenchidas por estudantes da região (incluindo aí boa parte sendo de Juazeiro e Petrolina), foi entrecortada com falas de estudantes seguidores que bradaram dizendo que os dados apresentados eram mentirosos.

A clara demonstração de intransigência, intolerância e mesmo virulência nos atos demostra o modus operandi desses políticos, alguns empresários e seus séquitos. Querer impor interesses claramente privatistas, sobretudo de olho no curso de medicina, justamente porque criaria uma boa reserva de mercado, utilizando argumentos populistas em defesa dos “coitados sertanejos” é, no mínimo, ilegítimo.

Isso revela uma ideologia coronelesca-patrimonialista à medida que desrespeita a institucionalidade democrática, querendo impor interesses espúrios, ou seja, que a Universidade Pública Federal seja vantajosa a esses grupos privados. Ademais,   insurge uma espécie de xenofobia à brasileira quando esse movimento alude barrar brasileiros em nome de um suposto discurso do sertanejo-vítima. O interessante e o bizarro de tudo isso é que, em nenhum momento, nem esses políticos e nem esses empresário, saíram em defesa da qualidade de escola pública.

O bônus regional, portanto, na particularidade que se apresenta para Univasf, não é legítimo. Porém, não só ilegítimo para universidade, mas também uma afronta para a sociedade regional e brasileira.

Além de evidenciar a ilegitimidade desse processo, o “caso Univasf” expressa, apesar de suas particularidades, uma insurgência nacional de interesses privatistas (em detrimento do público), uma postura da intolerância e de relações autoritárias. Parece que estamos vivendo um momento muito delicado, onde as institucionalidades democráticas, duramente construídas e ainda por se consolidar em muitas situações, se encontram ameaçadas por setores da sociedade que voltam a mostrar suas garras.

Este caso vivido no contexto da Univasf expressaria, portanto, um sinal, um sintoma social de ameaça às institucionalidade democráticas do Brasil? Em um período de fragilidades políticas e esgarçamentos  de conquistas sociais, os interesses privatistas estariam ganhando espaços? E a educação pública, gratuita e de qualidade, como ficaria?




2 comentários:

  1. PARABENS! VOCE DISSE TUDO QUE REALMENTE PENSO A RESPEITO DESSA PIADA DE BÔNUS. Engraçado é que na época das cotas para públicas, tais estudantes que agora tanto almejam o 'bônus', foram completamente contra, dizendo que era um absurdo. O BioS começou isso dai com Mary Ann e seu falso discurso de vitismismo sertanejo, ora, que estudem tanto quanto um paulistano! Ela não diz que a qualidade das suas aulas é similar ao ensino do Poliedro, pois bem, então tem direito de lutar por igual.

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    1. Eles sempre reeditam esse discurso...em 2010, mais ou menos, foi contra o ENEM... Mas nós sabemos o real motivo!

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