sexta-feira, 18 de março de 2016

Judicialização da vida cotidiana - torando a universidade




Ao trazer o tema da judicialização da vida cotidiana para o nível da reflexão, objetivo problematizar o contexto brasileiro no que diz respeito às suas instâncias de poder e os desdobramentos dos controles, em especial, no mundo acadêmico.

Em um primeiro momento, gostaria de situar as instâncias de poder que engendram a sociedade. O estado moderno, portanto, é composto pelos três poderes (o legislativo, o executivo e o judiciário). Sendo que o terceiro, por sua natureza, tem um papel mais reativo, no que diz respeito às suas ações de acomodamento, julgamento, ponderações, etc. De modo geral, cabem aos poderes executivo e legislativo um papel mais propositivo, que antecipa, adianta, executa e propõe as ações do estado e da sociedade.

Acontece que, no Brasil, a despeito das contradições e crises institucionais que vivemos, o poder judiciário tem ampliado seus espaços de ação e assumido papel propositivo.  Particularmente, entendo como uma acomodação que busca manter certa ordem social, uma vez que os outros poderes enfrentam graves dificuldades.

Não é por menos, considerando essa crise, que presenciamos ministério público demandando prisão de ex-presidente sem as devidas bases, órgãos de controle reorientado a vida das instituições, ações judiciais que buscam equacionar problemas de ordem pública que outrora caberiam aos órgãos mais executivos, etc. Nesse bojo, por exemplo, incidem sobre o campo educacional mandatos de segurança para matricular alunos por conta da idade / série, determinações para aprovar candidatos em concursos, professor respondendo processo por reprovar aluno e ordens para orientar a atividade docente, como é o caso da regulação sobre os diários de classe. Não que estas situações não sejam passíveis de receber colaborações do poder judiciário (e seus respectivos órgãos de controle), mas a questão principal se dá pelo modo como esses dispositivos são acionados, normalmente sem diálogos e sem entendimentos das especificidades, desconsiderando os saberes técnicos, históricos e experiências de quem os vivem. Sobre isso há vastos trabalhos, em geral inspirados no pensamento de Foucault, que analisa os exercícios de poder.

Esse contexto, no meu ponto de vista, tem criado um terreno propício para que se dê o fenômeno da judicialização da vida cotidiana. De maneira simplificada, entendo esse fenômeno como a invasão da vida privada de modo autoritário (é que claro que, muitas vezes necessária e bem intencionada essa “invasão” no que concerne à busca de uma ordem social e manutenção do estado de direito). Entendo ainda a "vida privada" englobando a vida interna das instituições, como é o caso do que é privado ao mundo acadêmico, à vida das universidades.
Antes de prosseguir deixo claro que, ao abordar essas questões de maneira encurtada, deixo várias pontas passíveis de lacunas, mas isso é o risco que assumo ao tratar de um assunto polêmico em curto espaço de comunicação.

Bem, a universidade tem também vivido essa situação, como é o caso recente da exigência dos professores apresentarem planejamento das atividades e seus relatórios. Até aí tudo bem, pois é importante e necessária a política do controle social e transparência da coisa pública. O problema é quando o poder excessivo do judiciário (e dos órgãos de controle) atua unilateralmente, desconhecendo as especificações, no caso, da vida acadêmica e de suas formas de funcionamento. A vida acadêmica, neste caso, é muito mais regida por um modus operandi artesanal e não no padrão de uma linha de produção, via modelo industrial. No caso dos PDs/PUDs (planos de disciplinas), que os professores passaram a ser obrigados a enviar a programação da disciplina do semestre seguinte ainda em plena finalização do semestre vindouro é algo que "tora" o professor e a universidade como um todo. Afinal, como planejar uma disciplina se o semestre não findou? Que tempo o professor tem de agregar novos elementos a disciplina (leitura de livros, textos, materiais didáticos)? Como atender essa exigência (que visa, no fundo, saber se o professor faz jus dos seus proventos) se não há tempo de planejar adequadamente? E o contrato pedagógico que só acontece nos primeiros encontros de aula e tão fundamental para o planejamento? Além disso, essa ótica imposta de fiscalizar a "linha de produção" do professor não seria incongruente com a vida acadêmica? Os órgãos de controle não estariam sendo autoritários quando impõem e exigem, sem ao menos procurar formas mais dialógicas e mesmo eficazes de fazer valer o controle social?

Os professores, sob a ameaça da deusa de olhos vedados irá acatar os ditames...mas será para “inglês vê”. E com isso a academia é torada!


Marcelo Ribeiro.

2 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Acredito que, provavelmente, esta prática, no caso, a que a norma impõem ao docente, surge a partir do crescimento e, por que não dizer, da consolidação, da mercantilização da educação superior no Brasil, na qual a educação formal, que tem o seu ápice, na formação profissional, passa a ser vista tão somente como um processo produtivo, diga-se de passagem, no entendimento das massas, passível de ser regrada pelo código de defesa do consumidor, e que ao seu fim fabrica produtos para serem ofertados no mercado de trabalho. Nesta perspectiva, entendo que enquanto esta visão dominar os ambientes e as mentes, a situação dos docente só irá ficar pior, e logo, estaremos num total estado de liberdade vigiada. Abraços amigo. André Luiz Queiróz de Andrade

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