Marcelo Silva de
Souza Ribeiro
Prof. da
Universidade Federal do Vale do São Francisco - Univasf
Recentemente os jornais televisivos e
escritos, blogs, rádios e outras mídias anunciaram a já esperada decisão da
Organização Mundial de Saúde (OMS) em incluir o transtorno por videogame
como doença em 2018, na próxima edição da Classificação Internacional de
Doenças (CID-11). Será chamado de “distúrbios de games”.
A
ideia da OMS, pelo menos do explicitado, é possibilitar uma melhor
identificação do problema, situando-o em um padrão de comportamento frequente
ou persistente de vício em games, avaliado como grave e que levaria a pessoa a
preferir os jogos a qualquer outro interesse na vida, comprometendo suas
atividades cotidianas, como o autocuidado.
A
despeito da necessária atenção que muitas pessoas, sobretudo crianças e
adolescentes, demandam na relação com os dispositivos das chamadas novas
tecnologias da informação e, em particular, com os games, a já esperada posição
da OMS carece de uma análise crítica, inclusive por sua tendência em chancelar
uma ampliação dos diagnósticos, principalmente os relativos aos transtornos
mentais e comportamentais. O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos
Mentais (DSM-5), por exemplo, apresentou em 2013 um catálogo de mais de 300 doenças.
Mesmo
a OMS se escusando em dizer que esse diagnóstico vai possibilitar e estimular
políticas públicas, interessa saber que políticas? Políticas atreladas ao
avarento e altamente lucrativo mercado farmacêutico? Em 2008, a própria ONU
detectou, por exemplo, aumento no consumo de psicotrópicos. No Brasil, a
Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) registrou aumentos nas vendas
de antidepressivos e calmantes, de 2009 a 2010, 83% e 57%, respectivamente. A
ritalina, usada no tratamento do transtorno de déficit de atenção e
hiperatividade (TDAH), muito receitada para crianças, teve um aumento no Brasil
de 775% em 10 anos.
O
diagnóstico não deixa de ser uma operação de poder à medida que algumas coisas
(pessoas!) são classificadas a partir de critérios construídos sócio
historicamente, mesmo que balizados por discursos científicos. Aliás, o
pensador francês, Michel Foucault, foi importante no desvelamento da relação
existente entre a produção de verdade, poder e ciência.
Criar
mais um diagnóstico, “distúrbios de games”, na perspectiva de focar o
sujeito e o objetivo de sua ação, no caso o jogador e o game, é como jogar a
água suja da bacia junto com o bebê, como diz
o ditado. A questão não está no comportamento em si, muito menos no objeto
destacado (no caso o vídeo game). Assim como outras situações de dependência e
compulsão, o problema não é no chocolate em si, para quem vive o “vício” de
comer, ou na malhação em si, para que vive a compulsão da corpolatria. O
problema precisa ser apreendido na sua função, nas razões, no contexto social e
familiar e nas necessidades do sujeito.
Uma
criança classificada com “distúrbio de games”, apresenta uma relação
hipertrofiada com o game porque tem pais que mantêm uma relação hipotrofiada
com ela. Há também o grande problema, pode-se dizer endêmico do ponto de vista
mundial, que são os processos sócio educativos marcados pela negligência e
permissividade, tendo como pano de fundo uma sociedade extremamente
individualizada e consumista, o que afeta profundamente o desenvolvimento de
crianças e adolescente. Tudo isso precisa ser levado em consideração para
entender a questão do “distúrbio de games” e não simplesmente estabelecer um
diagnóstico centrado no indivíduo e no objeto de sua ação.
Ter esse diagnóstico tal como está
sendo posto é deslocar o problema para algo que, no máximo, seria a ponta do iceberg,
é cegar para as reais razões. Termina por criar um controle que só vai
culpabilizar o indivíduo, em sua maioria crianças e adolescentes, e que de
agora em diante vão ter o peso do carimbo da OMS/CID: doentes mentais!!!
Sim!
É claro que existem crianças e adolescentes que precisam de ajuda na relação
com os games, mas uma coisa é reconhecer que precisam de ajuda e outra bem
diferente é diagnosticá-las como doentes mentais e tratá-las com psicotrópicos,
que é isso o que termina por acontecer.
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