domingo, 19 de fevereiro de 2012

Gota d'água


Era uma sala de aula,
Uma sala de aula bem típica. As carteiras estavam enfileiradas, os alunos devidamente posicionados e havia uma atmosfera de concentração. O professor parecia estar aplicando «aquela» prova geral. Ele circulava pela sala como a inspecionar a atividade dos discentes. Seu semblante parecia expressar descontentamento. Talvez porque não estivesse sendo correspondido. Os alunos mal preenchiam as questões. Uns três ou quatro passaram a fazer ruídos; vozes quase que inaudíveis. Apenas era possível notar um leve tom de burburinho ao fundo da sala. Isto bastou para que o professor fosse tomado por uma cólera. Saiu do descontentamento para uma explosão de descontrole. Começou a gritar em classe e a maldizer seus alunos. Estava realmente muito enfurecido. Provavelmente aquela distração do pequeno grupo ao fundo tivesse sido a gota d’água. Não suportou mais e sabe lá Deus o que já havia passado. Ou então, só estivesse mesmo saturado e ansioso para novas perspectivas em sua vida profissional. Em vão saber ao certo. O fato é que o comportamento do professor revelava uma grande desaprovação. Sua reação mostrava um confrontar com algo que se passava e ao mesmo tempo uma intenção de  mudar seus alunos. Talvez mudar a atitude passiva, talvez mudar a falta de concentração e responsabilidade dos alunos. Não sei se houve resultado, se o professor conseguiu chamar atenção dos alunos e de fato lograr êxito quanto educador. Não sei porque não pude continuar com o sonho. Acordei com a nitidez das cenas e a sensação das experiências.
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Um sonho sempre é múltiplo e disponibiliza várias perspectivas. Irei me centrar na possibilidade de discutir algumas posturas docentes, mas também buscando uma compreensão, tentando não cair no julgamento puro e simples. Apesar da situação ser de dimensão onírica, tomarei como exemplar de inúmeras realidades, acreditando, portanto, na riqueza de reflexões plausíveis.
Penso que é importante partir da premissa constitucional de que todos são inocentes até que se prove o contrário. O fato de um professor assumir uma postura tradicional não significa, de ante mão, que esteja imbuído de um sentido negativo. Sua intenção pode ser a melhor, desejando que todos os seus alunos aprendam. Certamente o problema reside no método, na maneira como conduz, nas escolhas de se relacionar e entender os processos pedagógicos. 
Uma possível explicação ganha eco naquilo que Bourdieu e Passeron chamavam de habitus. Essa incorporação inconsciente que guia o comportamento do sujeito, reproduzindo os padrões e garantindo que a cultura se mantenha entre os indivíduos após sucessivas renovações de gerações. Já ouvi muitas vezes, nesse sentido, professores falarem que ensinam de tal maneira porque seus professores faziam daquele mesmo jeito com eles. E assim a humanidade caminha, como diz uma das canções de Lulu Santos.
A reação intempestiva e até brutal do professor não pode ter perdão à medida que fere e viola a experiência significativa de aprender dos alunos. Por outro lado, não se pode crucificar aquele sujeito, que antes de ser professor é uma pessoa, como diria Antonio Nóvoa. Essa pessoa é marcada por histórias, pertence a um tempo e significa sua existência de modo singular.
Quero trazer um outro viés dessa história. É verdade que, se todos apenas reproduzissem a cultura e os padrões sociais não existiriam mudanças. Se assim fosse, a sociedade não «avançava». O importante disso tudo é atentar, inclusive, para uma posição educadora daquele que se dispõe a educar. E aí cai na velha questão de quem educará aqueles que educam? 
Penso que o paroxismo da questão não reside em quem, mas no como. Isto significaria dizer que o importante, pelo menos a mim assim o parece, seria atentar para um certo «olhar» sobre aquele que educa. Seria possível, inclusive, instituir uma formação permanente onde o cuidado com o outro e até mesmo consigo mesmo fossem prerrogativas fundamentais para o desenvolvimento do docente.
Em síntese, poderia dizer que, antes de se julgar o professor é primordial compreender suas razões, mas sem nos conformar com as possíveis respostas. É importante avançar e cuidar de nós e do outro, buscando compreender suas fontes e razões. E ainda, provocar outras possibilidades de enxergar as situações vividas e tentar agir de maneiras diferentes.
Eu queria voltar ao sonho e puder conversar com aquele professor e seus alunos. Queria dizer a ele que, se eu estivesse correto em minhas percepções, entendia a sua cólera (mesmo que não concordasse). Diria também que eu sabia que ele desejava que os alunos estudassem e que estivessem comprometidos com as atividades. Falaria ainda que sabia que estava cansado e que aquilo havia sido a gota d’água. Eu diria que sentia muito. Perguntaria aos alunos como se sentiam naquele tipo de aula, provavelmente chata, enfadonha e amedrondadora; justamente porque o professor se baseava em métodos intimidadores (na vã ilusão pedagógica de garantir a aprendizagem). Por fim, gostaria de propor novas possibilidade de experimentar a vida em sala de aula. Talvez em outro sonho, quem sabe? 
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BOURDIEU, P.; PASSERON, J-C, La reprodution. Élements pour une théorie du système d’enseignament. Paris, Minuit, 1971.
NOVOA, A. (org.). Os professores e sua formação. Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1997.

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