domingo, 2 de fevereiro de 2020

A mercantilização da educação como mantenedora de desigualdades sociais


Tereza Ellen da Silva Teles
(Graduanda de Psicologia. 
Disciplina Educação e Políticas Públicas. 
Prof. Marcelo Ribeiro)



Não é uma realidade muito nova que o Brasil venha sofrendo com a ascensão de pensamentos neoliberais que insistem em tratar como mercadorias recursos que são, pela Constituição Federal de 1988 (Art. 6º, CF - 1988), considerados direitos de todo cidadão. Com diversos tipos de discursos conservadores que trazem a tona pautas que poderiam ter sido já superadas, como por exemplo contrárias aos sistemas de cotas e auxílios oferecidos pelo governo a famílias na ou abaixo da linha da pobreza, se torna cada vez mais viva a ideia de que educação não é um direito, é um produto, e sendo um produto deve estar inserido na lógica de compra e venda.
É extremamente difícil não observar desigualdades sociais num país onde mais de 13,5 milhões de pessoas vivem na extrema pobreza (IBGE, 2019). Apesar disso, aqueles poucos que muito se privilegiam dessas desigualdades ou aqueles – uma maior quantidade – que foram de tal forma alienados que apreciam a estrutura que os oprime, estão interessados apenas na manutenção desse sistema.
Vivendo sob um sistema de produção capitalista, onde poucos detêm os meios de produção e acumulam lucros exorbitantes e muitos vendem o único recurso que tem – a força de trabalho – para conseguir garantir sobrevivência, estamos constantemente sujeitos à naturalização de processos tão cruéis como a divisão por classe, raça e gênero, criminalização da pobreza, entre outros que se colocam como a base de nossas instituições de saúde, segurança, política e, de maneira aqui destacada, de educação.
Patto (2007), traz uma discussão ilustre quando admite que existe uma concepção de encarceramento dos pobres a partir da escola, sob um discurso muito bem aceito e romantizado em nossa sociedade: “escolas cheias, cadeias vazias” que vemos constantemente de outro modo, especialmente na mídia, com o “estar na escola para não estar na rua”. Partindo desta ideia, fica cada vez mais óbvio que a maneira como a escola se constitui para as classes abastadas está longe de ser a mesma que constitui a escola para os pobres. Ao passo que a primeira tende a ser um ambiente que aglomera cultura, conhecimento acadêmico e esporte, preparando os estudantes para serem donos de capital e/ou intelectuais; a segunda tende a ser um depósito onde os estudantes vão para serem doutrinados e descarregarem a responsabilidade dos pais – que precisam trabalhar para garantir o sustento – e que, muito frequentemente, não reconhecem motivações reais para estarem ali, isto é, não veem sentido. O que faz então com que exista essa diferença de classe na oferta da educação se ela é um direito de todos? 
Como já citado, existe uma concepção liberal de que a educação deve ser uma mercadoria, sendo assim, quem pode pagar tem uma maior qualidade, enquanto quem não pode, usufrui de uma qualidade inferior ou não usufrui. E assim se renova o ciclo de pobreza/riqueza, que tenta se justificar algumas vezes, de forma desonesta, pelo discurso da meritocracia. Como aponta Freire (1987), ao abordar a concepção bancária da educação, há, dentro da ideia de mera reprodução do conhecimento, uma tentativa de controlar o oprimido para que o sistema continue favorecendo o opressor. Dessa forma, a educação que deveria ser problematizadora e libertadora, priorizando a criticidade e reflexão, atua como um mecanismo de “renovação” da opressão. 
Ironicamente, o que Paulo Freire (1996) chamava de pedagogia da autonomia, pautada na reflexão crítica, parece ter sido apropriado pelas classes burguesas e implementado em seu sistema de educação. Isto é, enquanto as crianças da educação infantil em escolas públicas são postas em salas com mesinhas e cadeiras para ligar pontos e reproduzir formas, as crianças da escola particular também o fazem, mas sentadas em círculos ou puffs, e com o tempo de parar para discutir sobre honestidade, respeito, sobre família e emoções. A educação tem, ao longo do tempo, vagarosamente evoluído nesses termos, mas quando se compara as esferas pública e privada da educação básica, há uma discrepância na qualidade do serviço oferecido.
De modo quase desafiador, quando se olha para a educação superior a situação praticamente se inverte. As Instituições de Ensino Superior (IES) públicas acumulam uma força e um prestígio muito maior atualmente do que as IES privadas, essencialmente tecnicistas e voltadas ao mercado de trabalho, ao passo que as primeiras sustentam-se a partir do tripé ensino, pesquisa e extensão e são maiores expoentes das produções científicas atuais – mesmo com as tentativas de se fazer crer no contrário. Não à toa estudantes de escolas privadas são encorajados e cobrados para ingressar em universidades públicas e não à toa existe um recorrente discurso que tenta viabilizar a privatização das mesmas.
As universidades públicas representam hoje importantes fontes do que Bordieu, como citado por Mendes & Seixas (2003), convencionou chamar de capital cultural, que diz respeito ao acesso às artes, literatura, música e conhecimento. O autor traz ainda outras duas concepções de capital, o social, que diz respeito às relações estabelecidas, e o econômico que se refere ao acúmulo de dinheiro. Ele assume que, as pessoas de classes mais abastadas têm um acúmulo considerável dessas três esferas que são, segundo ele, preditoras de uma vida escolar e profissional bem-sucedida. Aqui destaca-se a importância que escolas privadas dão à cultura, tornando-se espécies de “panelinhas” nas quais se exige um nível elevado de todos esses capitais, não somente para quem consome o serviço, como para quem o oferece. 
Assim, a escola particular é um espaço onde crianças bem colocadas socioeconomicamente vão para socializar com crianças em igual condição – garantido seu capital social – e aprender com profissionais que minimamente fazem parte daquela realidade também, o que naturalmente faz com que se reproduza uma lógica higienista e segregacionista. As crianças ricas ficam desse lado, com esses recursos, enquanto as crianças pobres ficam daquele lado, com o que sobra ou é descartado. E dessa forma a educação libertadora chega apenas para quem já está liberto. É importante destacar que muitas vezes, quando o capital cultural escoa para classes mais baixas, como é o caso de universidades públicas de boa qualidade ou o caso de estudantes pobres com um nível intelectual avançado, as classes burguesas se apropriam – de forma sutil ou não – dessas possibilidades, seja através do discurso da privatização que é visivelmente hostil, seja pelas chamadas bolsas de estudos, que são mais tragáveis e até muito valorizadas.
Em conclusão, expressa-se aqui a importância da criação de políticas públicas que realmente visem transformar a realidade das pessoas em condições sócio e economicamente desfavorecidas, garantindo assim seus direitos. Fazer política pública, é sempre bom lembrar, não é fazer caridade ou assistencialismo, e sim reivindicar a equidade das pessoas em suas condições. Como apontou Freire, ninguém se liberta sozinho e ninguém liberta ninguém, qualquer tentativa de “boa ação” que serve ao propósito de manter o controle e a subjugação é, antes de tudo, opressão.


Referências
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.

Freire, P. (1987). A concepção “bancária” da educação como instrumento da opressão. In: Freire, P. (1987) Pedagogia do Oprimido (pp. 37-49). Rio de Janeiro, RJ. Editora Paz e Terra.

________. (1996) Pedagogia da Autonomia. São Paulo, SP. Editora Paz e Terra.

IBGE - Instituto Nacional de Geografia e Estatística (2019). Extrema pobreza atinge 13, 5 milhões de pessoas e chega ao maior nível em 7 anos. Agência de notícias. Disponível em:

Mendes, J. M., & Seixas, A. M. (2003). Escola, desigualdades sociais e democracia: as classes sociais e a questão educativa em Pierre Bourdieu. Educação, Sociedade & Culturas19, 103-129.

Patto, Maria Helena Souza. (2007). "Escolas cheias, cadeias vazias" nota sobre as raízes ideológicas do pensamento educacional brasileiro. Estudos Avançados21(61), 243-266. https://dx.doi.org/10.1590/S0103-40142007000300016

Nenhum comentário:

Postar um comentário