domingo, 2 de fevereiro de 2020

Minha presença o incomoda? Reflexões sobre a Lei 10.639/03 e seus impactos

Eralina de Lima Ferreira 

(Graduanda de Psicologia. 
Disciplina Educação e Políticas Públicas. 
Prof. Marcelo Ribeiro)

O presente ensaio origina-se das incursões da autora no espaço escolar, ora como estudante, ora como amiga ou familiar daqueles que ali se encontram. No ano de 2003 a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) sofre alterações para determinar a inclusão e propiciar propostas pedagógicas voltadas a História da África e dos africanos, a vida dos negros no Brasil, a Cultura Negra Brasileira e o negro na formação da sociedade nacional.
Sendo um componente obrigatório do currículo escolar, que recursos as escolas têm adotado para sua efetivação? Qual o impacto desse ensino nas escolas? A escola está pronta pra trabalhar o tema? Apta a reconhecer uma estrutura racista que é macropolítica? Essas e outras inquietações mobilizam essa produção, não a fim de prover respostas, mas de refletir acerca do fenômeno. 
Para adentrar o tema nos debrucemos sobre a última questão “Estaria a escola preparada para reconhecer a estrutura racista presente no macrossistema e que se reproduz a nível de microssistemas?” (Benetti, Vieira, Crepaldi & Schneide, 2013). A resposta parece ser que ainda não, o racismo que existe na escola é institucional, por isso atua, assim como um vírus altamente mutável e silencioso, sobre as questões de raça, discriminando os sujeitos na hora de distribuir serviços, oportunidades, etc. (Silva, 2003; Lima & Vala, 2004).
Quando uma instituição opera sob um discurso racista, escusando-se de reconhecer isto e ter a oportunidade de desconstruir-se se encontra responsável pela efetivação de uma política desse tipo, nos deparamos com um conflito ideológico. É então terreno fértil para crenças arraigadas na sociedade, como de que racismo é só mais uma faceta do preconceito; crença essa equivocada.
Como afirma Jones (1972 citado por Lima & Vala, 2004) há várias características que distinguem esses fenômenos, enquanto o racismo se fundamenta na crença essencialista das diferenças entre raças, o preconceito não implica essa mesma noção de natureza e essência, outra diferença básica é o fato de racismo ser uma prática cultural e institucionalizada. Lima & Vala (2004) sintetizam que práticas racistas englobam discriminação e exclusão social, enquanto o preconceito em geral tem caráter atitudinal.
Em síntese, o racismo moderno carrega como discursos estruturantes que a discriminação é uma coisa do passado, além da visão ilusória e meritocrática de igualdade de oportunidades. Acrescidas do temor do negro “roubar” o lugar dos brancos (sendo um exemplo disso os discursos anti política de cotas), além de sustentadas pela a ideia de que as demandas da população negra são “mimimi” e quando as pautas são atendidas essa população está recebendo privilégios demais (McConahay, 1986 citado por Lima & Vala, 2004).
Ao retomar a questão de quais os impactos desse ensino dentro das escolas, e já cientes de que em sua grande maioria não é adequadamente aplicado em razão do racismo estrutural denegado, pensamos em quais os impactos dessa discussão; onde muitas vezes quem pauta essa proposta está impregnado por visões equivocadas. Cerri (2006) aponta que tratar do tema não é garantia a curto prazo de mudanças, contudo, ao passo que gera reflexões e debates há também caminho para diálogos e mudanças a longo prazo e possíveis alterações nas atitudes racistas. Ao levar esse debate a escola dá-se voz a um grupo silenciado e marginalizado, faz com que estes reconheçam as violências sofridas como legítimas e construam pautas de luta contra estes.
Se o debate é principalmente guiado pelo professor, seu discurso tem grande impacto sobre o quê e como chega a seus alunos, assim sendo é vital nos atentarmos a quem estamos formando, que competências devem ser requeridas de um docente. Uma formação anti racista, crítica e pronta para empreender metodologias que façam sentido aos estudantes em seu contexto. Educar aquele que irá educar para reconhecer, não de modo banal, essas estruturas, aliando o que se tem cientificamente produzido sobre o assunto com a realidade prática, o instigar a conhecer a realidade e assim a transformar (Freire, 1996; Libâneo, 2011).
Não é responsabilidade apenas do professor, e quando essas ações não são devidamente implementadas não devemos unicamente a ele legar a culpa, isso é perpassado pela formação, pelas discussões que a universidade aborda, quem está gerindo essa instituição, dentre outros. Acerca da instituição nos questionamos quais os recursos de que dispõe para ampliar o debate e o tornar instigante aos alunos?
Os documentos que regulamentam a Lei 10.639/03 são disponibilizados na internet, contudo o que se observa é que muitos docentes não acessam esse conteúdo (Cerri, 2006). Recentemente numa conversa a ensaísta ouviu de um aluno “É sempre para a gente ver ‘O navio negreiro’”, a menção se refere ao texto de Castro Alves (1986) como parte do poema épico Os Escravos, enquanto único recurso adotado pelos professores para a discussão. Por si só a indireta perpetuação de um termo racista no título da obra sem promover a partir disso uma reflexão crítica já reflete que o espaço escolar não está adequadamente preparado para abordar a temática, sendo escravo um termo naturalizante para a violência de povos escravizados, trazendo ainda mais o vitimismo. 
Aqui retornamos ao poema de Angelou (1978) cujo trecho intitula essa produção, ao questionar se a presença do negro assusta e intimida aqueles que desejam manter políticas racistas, sustentar um ideal de embranquecimento, silenciar um grupo que tem aos poucos erguido sua voz. Assim esse grupo e seus movimentos se levantam, mesmo frente aos desmontes atuais, às opressões e silenciamentos históricos, essa lei se mostra um marco relevante, e enquanto parte de uma proposta das ações afirmativas, promovendo reparação sociohistórica (Grupo de estudos multidisciplinares em ações afirmativas, 2017).
Finalizamos este trabalho, mas não as reflexões sobre o tema analisando que neste percurso de 17 anos desde a aprovação da Lei 10.639/03 os avanços têm dado apenas tímidos passos em direção ao objetivo de promover maior consciência e equidade nas instituições de ensino. Apesar das limitações da formação docente, barreiras impostas por um racismo estrutural denegado, o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana é mais que nunca necessário para garantir uma ressignificação e valorização cultural das matrizes africanas que formam a diversidade cultural brasileira. Deve-se enfocar na peça essencial que são os professores, eles precisam ser escutados, precisamos investir em cuidar daquele que ensina, pois se ele está pronto a exercer adequadamente seu papel frente a luta contra o preconceito e a discriminação racial há maior probabilidade de mudança social. 

Referências
 Angelou, M. (1978). Still I rise (Ainda assim eu me levanto). Recuperado de https://www.geledes.org.br/maya-angelou-ainda-assim-eu-me-levanto/amp/ em 20 de janeiro de 2020.

Benetti, I. C., Vieira, M. L., Crepaldi, M. A. & Schneide, D. R. (2013). A abordagem ecocultural do desenvolvimento humano: Fundamentos da teoria bioecológica de Urie Bronfenbrenner. Pensando Psicología​. 9(16), 89-99. 

  Cerri, L.F. (2006). Usos públicos da história no Brasil contemporâneo: demandas sociais e políticas de Estado. Araucaria. Revista Iberoamericana de Filosofía, Política y Humanidades, 15, 3-19.

Freire, P. (1996). Pedagogia da autonomia. São Paulo: Paz e Terra.

GEMMA - Grupo de estudos multidisciplinares em ações afirmativas. (2017). O que são ações afirmativas? Recuperado de: http://gemaa.iesp.uerj.br/o-que-sao-acoes-afirmativas/. em 20 de janeiro de 2020.

Libâneo, J. C. (2011). A escolarização e o novo paradigma produtivo. In J. C. Libâneo, Adeus professor, adeus professora? Novas exigências educacionais e profissão docente (pp. 441-461). São Paulo/SP: Cortez.

Lima, M. E. O. & Vala, J. (2004). As novas formas de expressão do preconceito e do racismo. Estudos de Psicologia (Natal), 9(3), 401-411. 

Secchi, L. (2012). Políticas públicas: conceitos, esquemas de análise, casos práticos. São Paulo, SP: Cengage Learning.

Silva, T. T. da. (2003). Quem escondeu o currículo oculto? In T. T. da SILVA, Documentos de identidades: uma introdução às teorias de currículo (pp. 80-92). Belo Horizonte: Autêntica.


[1] Angelou, M. (1978). Still I rise (Ainda assim eu me levanto). Recuperado de https://www.geledes.org.br/maya-angelou-ainda-assim-eu-me-levanto/amp/ em 20 de janeiro de 2020.

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