segunda-feira, 9 de maio de 2022

Medicalização, educação e raça






Barbara Mó Pereira

Joicilene Macedo 

 

Graduandos em Psicologia da Universidade Federal do Vale do São Francisco

 

Atualmente, em nossa sociedade, nos deparamos com o aumento exponencial do fenômeno conhecido como medicalização da educação, que nada mais é do que a atribuição de causas médicas para comportamentos relacionados aos processos de ensino aprendizagem que não estão dentro do que se é esperado na escola. Posto isso, fica evidente a necessidade de articulação entre Psicologia e Pedagogia nas discussões e reflexões a respeito de questões sociais e raciais que estão também por trás desse fenômeno, mas que vêm sendo omitidas, e consequentemente transformadas em culpabilização individual do estudante, de seu contexto familiar nas intersecções de raça e classe diante das dificuldades apresentadas no processo de escolarização e no fracasso escolar.

Segundo Machado (2010) a maioria das dificuldades de leitura e escrita apresentadas pelas crianças são reflexo de um funcionamento das escolas em que as diferenças se tornam desigualdades. Algumas dessas crianças apresentam dificuldade de aprendizagem logo no início da sua escolarização, e muitas delas apresentam dificuldade à medida em que as necessidades não são sanadas. Não obstante, existe ainda a estigmatização da criança que está com dificuldades em aprender e a atribuição de rótulos relacionando a dificuldade com preguiça e falta de interesse da própria criança ou falta de incentivo dos cuidadores. Desse modo, impõem à criança a não possibilidade de ocupar a posição de não saber, então busca-se uma causa para que ela seja encaminhada a um serviço especializado e então receba um diagnóstico de transtorno de aprendizagem ou do neurodesenvolvimento que a possibilite aprender através da segregação na relação saúde e doença.

Nessa perspectiva, se faz importante e necessário racializar o processo de medicalização como ferramenta discriminatória de controle de subjetividades e perpetuação do racismo na dimensão social do sujeito.

O racismo é operado através de um sistema complexo, multidimensional, violento e que incide na sociedade de maneira estratégica, a saber é possível qualificar os tipos de racismo em: individual, institucional e estrutural. Bem como, o racismo é operado na perspectiva institucional de maneira a manter privilégios ou desvantagens baseados na hierarquia das raças dentro das instituições, sendo que ao refletir sobre uma perspectiva histórica, a ideia de que haveria uma população merecedora de controle, disciplinamento e contenção, se manteve presente nas atitudes e ideais dos intelectuais responsáveis pela instituição do sistema educacional brasileiro (SANTOS, 2022).

Aqui cabe refletir como a instituição escolar se formou na perpetuação do racismo, fazendo com que um aspecto em comum colocasse esses indivíduos negros como passíveis às práticas de controle e às relações de poder legitimadas pelo domínio do discurso científico. E mais especificamente a medicina, difundiu e ainda difunde ideários eugenistas efetivados pelas práticas higienistas direcionadas para as populações negras e pobres (BOLSANELLO, 1996 apud SANTOS, 2022, p. 31). 

Conforme analisado por Mbembe (2018) esses processos corresponderem a lógica de dominação colonial, a qual trata-se, então, de uma dominação completa dos seus corpos e do trabalho e se estrutura na dialética de perceber certos corpos, sujeitos e subjetividades como de segunda categoria (inferiores), suas mortes são, assim, ignoradas na concepção de política pública nacional, que cruelmente se omite diante da cena de dor e violência que se desvela em vulnerabilidades e riscos as existências e se expressam em dimensões cada vez mais profundas. Sendo assim, reflexo de uma necropolítica, ou política de morte, como atesta Mbembe (2018) a uma sociedade arraigada no racismo e falso moralismo, que escolhe diariamente aniquilar a diversidade humana para garantir forjadas hegemonias. Trata-se, então, de uma dominação completa dos seus corpos, aprisionamento de subjetividades e desumanização de seus modos de ser, agir, pensar e aprender.

Com a expansão do sistema educacional brasileiro, Santos (2022) discute que desde a passagem do Brasil Império para o Brasil República, a instituição escolar vem sendo atravessada pelas práticas e pelos discursos inspirados nos ideais de eugenia e higienistas juntamente com práticas de uma medicina voltada para o controle do corpo social que encontrou na escola um estratégico espaço de deslocamento de ações que teriam o  objetivo de erradicar epidemias, para intervenções sobre as subjetividades dos sujeitos, além da construção da imagem normativa do “aluno padrão”.

Nessa dinâmica complexa, o sistema educacional foi marcado por práticas de embranquecimento, segregação e de exclusão do corpo negro que ao longo dos anos se intensificaram na realidade escolar. Explicações sobre o fracasso escolar eram inundadas pelo fator biológico e pela dimensão social dos sujeitos, não se abstendo a raça e a classe como fatores intensificados desses processos (SANTOS, 2022). Desse modo, a busca pelo aluno ideal, obediente, pronto para aprender, silencioso e que segue a “norma” teve a medicalização como ferramenta capaz de controlar e enquadrar as subjetividades e os modos diferentes de aprender, operando como vetor de neutralização dos movimentos de resistência frente aos mais distintos aspectos do racismo no meio educacional.

Visto isso, não são levadas em consideração as sequelas deixadas pelo não pertencimento dos negros à realidade escolar, como  também não se discute o racismo estrutural e o racismo institucional como elementos estruturantes dos modos de subjetividade nos processos de escolarização da população negra, e nas articulações com a medicalização, no entanto o que se observa são práticas e estratégias discriminatórias arraigadas tanto nos currículos pedagógicos como também nas expressões e manifestações atreladas aos fatores institucionais, políticos, culturais, sociais e raciais no espaço escolar (SANTOS, 2022)

Este processo de medicalização nutre também o abandono do Estado na criação de mecanismos que revertam a desigualdade racial construída e perpetuada historicamente, além de camuflar verdadeiros problemas da escola, principalmente a pública, na falta de investimento na educação, na falta de recursos dentro da sala de aula, nas condições precárias de trabalho de toda a equipe escolar etc., que se transmutam em patologias individuais na ocupação do lugar do não aprender.

Por fim, vemos que a psicologia, enquanto ciência e profissão possui responsabilidade nos questionamentos e nas articulações entre os campos da saúde e da educação, a partir da criação de espaços de emancipação e de atitudes que potencialize a luta antirracistas na busca de equidade nos processos de ensino e aprendizagem plurais e singularidades das subjetividades de crianças negras.  

 

Este texto é produto do processo vivido no âmbito da disciplina Educação e Políticas Públicas, do curso de Psicologia da Univasf, tendo como professor Marcelo Silva de Souza Ribeiro em abril de 2022.

 

Para saber mais:

 

SANTOS, Wítano de Oliveira. Relações entre racismo e medicalização na educação. UFT,        Miracema do Tocantins, 2022.

 

MACHADO, Adriana Marcondes. Medicalização e escolarização: por que as crianças não         aprendem a ler e a escrever. Serviço de psicologia escolar do instituto  de psicologia     da universidade de São Paulo. v.8, p. 24-29, 2010.

 

MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo, sp: n-1 edições, 2018.

 

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