segunda-feira, 9 de maio de 2022

Letramento, alfabetização e políticas públicas



Igor Almeida

Yanderson Silva

Graduandos em Psicologia da Universidade Federal do Vale do São Francisco


Estas aqui são palavras. Ao lê-las você tem acesso não só a esses traços na tela, mas a um som e a um significado. O significado pode variar de acordo com o que você já conhece e com inferências que você pode fazer, e fora isso, você precisa passar por um processo complexo de traduzir esses traços arbitrários em, justamente, algo que faça sentido. Ao fazer isso de maneira quase automática e precisa talvez você tenha esquecido o quão complexo é traduzir esses traços organizados em uma certa ordem em algo que você entenda, e o quão difícil é ter acesso a uma “ortografia mental” de uma língua. Mas para sentir o gostinho de não saber o que é ler de maneira automática e precisa e inferir significado no processo, basta que você abra um texto em uma língua que você não conhece de cor o sistema alfabético. 

Ik ken geen Nederlands. Oké, ik begrijp je punt, ik weet niet wat die woorden betekenen.[1]

 

            O que você está passando agora ao não entender nenhuma palavra desta frase em holandês, é algo semelhante ao que uma criança de mais ou menos 5 anos passa ao começar seu processo de alfabetizado. Assim, a criança precisa aprender esse processo todo do zero, o que é desgastante cognitivamente (mais ou menos como seria pra você aprender holandês) e precisa de instrução explícita.

            E aqui chegamos no ponto em que tratamos de políticas públicas no Brasil. Existe uma verdadeira guerra entre métodos de alfabetização. Só essa guerra daria um artigo de 50  páginas, que, na verdade, já existe e declara o seu fim[2]. Neste mega hiper mega blaster estudo Castle e colaboradoras dissertam exaustivamente o que é preciso para que um leitor novato se torne um expert, tomando por base pesquisas em aquisição de leitura equilibrada e informada sobre o desenvolvimento humano e baseada numa compreensão profunda de como a linguagem e os sistemas de escrita funcionam, propondo uma agenda compreensiva de ensino. 

            Assim, por um lado, a literatura aponta exaustivamente que métodos fônicos funcionam de maneira mais efetiva para a aquisição da leitura e da escrita que métodos globais, de maneira transcultural e se mostrando ainda mais efetivo para crianças com índice socioeconômicos baixos e com dificuldade de leitura[3].

            Sendo assim, porque ainda utilizamos o método global? O método, afinal, é tão importante assim? Existe um consenso?

            Essa é uma discussão complexa, antiga e profundamente política. Segundo Alessandra Seabra, doutora em educação infantil, em matéria do G1:

 

“O método é um dos fatores determinantes e tem um peso significativo. Mas existem outros aspectos importantes: o estímulo que as crianças recebem em casa, a alimentação, o acesso a livros, a nutrição durante a gestação, a motivação para aprender a ler, o número de alunos em sala de aula. Não dá para ser reducionista e culpar o método”[4]

            

            Assim, por mais que a literatura sustente o uso de um método específico, é preciso considerar a estrutura socioeconômica e educacional do país. Além disso, é possível utilizar aspectos positivos de outros métodos, como valorizar os conhecimentos que os alunos já tem, considerar o universo sociocultural que eles estão inseridos, fazer avaliações constantes sobre o processo de aprendizado de forma flexível, propiciar contextos de interação e mediar o processo de descoberta das crianças. 

            Por outro lado, também é preciso descobrir do que se trata realmente o método fônico e não perpetuar espantalhos sobre ele. Não se trata de uma repetição mecânica e descontextualizada. 

            Atualmente o governo está com um novo Plano Nacional de Alfabetização que se baseia no método fônico. Mas, especialistas estão criticando o Plano como “muito genérico”, com “falta de clareza e efetividade”[5].

            Isso nos faz questionar se de fato o atual governo está preocupado “para aonde as evidências apontam” e em faz uma “gestão técnica”, ou se apenas estão, como parece ser o padrão, seguindo uma agenda ideológica. Muitas pessoas associam os métodos globais com uma visão de mundo mais à esquerda, e figuras de esquerda como Gregório Duvivier chegam a defender em programa popular da HBO[6] o método, apesar do que diz a literatura e da complexidade do tema tratada no presente texto. 

            Essa associação de métodos com bandeiras políticas talvez justifique a escolha do governo atual em rejeitar os métodos globais no PNA, que estão também historicamente relacionados com Paulo Freire. Mas, mesmo com uma roupagem de evidência científica, o governo propõe um plano que parece controverso, genérico e que justamente cabe perfeitamente em sua agenda política, e não com o que parece funcionar de acordo com a ciência.


Este texto é produto do processo vivido no âmbito da disciplina Educação e Políticas Públicas, do curso de Psicologia da Univasf, tendo como professor Marcelo Silva de Souza Ribeiro em abril de 2022.



[1] N.T: “Eu não sei nada de holandês. Tudo bem, eu entendi o seu ponto eu não sei o que essas palavras significam.”

[2] CASTLES, Anne; RASTLE, Kathleen; NATION, Kate. Ending the reading wars: Reading acquisition from novice to expert. Psychological Science in the Public Interest, v. 19, n. 1, p. 5-51, 2018.

[3] LOPES, Flavia. O desenvolvimento da consciência fonológica e sua importância para o processo de alfabetização. Psicologia escolar e educacional, v. 8, p. 241-243, 2004.

[4]https://g1.globo.com/educacao/noticia/2019/08/16/metodos-de-alfabetizacao-entenda-a-diferenca-entre-o-fonico-o-global-e-os-demais.ghtml

[5]https://g1.globo.com/educacao/noticia/2019/08/15/caderno-sobre-politica-de-alfabetizacao-do-mec-e-muito-generico-dizem-especialistas.ghtml

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