terça-feira, 6 de fevereiro de 2018

Uma reflexão sobre o conceito popular de experiência e sua relação com a Epistemologia da Prática


Mario César Pedrôso Lira


O cabelo grisalho é uma coroa de experiência...
Provérbios 16:31

O conflito entre indivíduos de gerações diferentes, se dá, entre outras coisas,  por uma interpretação  parcial da palavra: “experiência”. De acordo a o entendimento comum, “experiente”, é o indivíduo maduro, do ponto de vista etário, como propõe o autor de Provérbios. Assim, a experiência é mais atribuída ao  sexagenário, que ao adulto jovem de vinte anos de idade. Atribui-se experiência, ao senhor ou senhora que viveu mais tempo que a um jovem ou uma jovem que se contrapõe em uma situação comum. A conclusão desta interpretação é, portanto: Quem viveu mais, é mais experiente, quem viveu menos, é menos experiente.
 É claro, que há outros usos para o termo “experiência”. Como propõe Carmem Cavaco, “O conceito de experiência apresenta-se muito impreciso, uma vez que engloba uma grande diversidade de significados.”
 No entanto, é objetivo deste texto refletir sobre o uso da palavra  experiência no contexto da  simples passagem de tempo, e mais à frente, criar uma conexão com a expressão: Epistemologia da prática.
Citando Barbotin (2004), Mauro Martins Amatuzzi, descreve experiência como “o contato com o real.”  Esse contato pode se dar a partir dos variados sentidos, físico-tátil, visual, auditivo, gustativo, olfativo, emocional ou reflexivo. Amatuzzi ainda afirma que  não é o simples contato com o real que produz experiência. De acordo com o autor, esse contato deve produzir significados. Assim, podemos interpretar que a experiência surge de um contato além da superficialidade com um objeto ou situação, e essa relação relevante, produz resultados significativos. É possível ainda interpretar que a esse “contato com o real”, deve ser reiterado, repetido, para que o significado seja realmente perceptível.
Indo mais além, e experimentando os termos em questão para um reflexão mais apurada, citamos Paulo Freire, que em seu livro Educação como prática da Liberdade, propõe que os contatos são próprios dos animais. Segundo Freire (1967), “os contatos  implicam em respostas  singulares, reflexas  e não reflexivas e culturalmente inconsequentes. Deles resulta a acomodação, não a integração.” Como solução, Freire então propõe as relações como um contraponto aos contatos. “A partir da relações do homem com a realidade, resultantes de estar com ela e de estar nela, pelos atos de criação, recriação e decisão, vai ele dinamizando o seu mundo. Vai dominando a realidade.”
Parece assim, que a experiência significativa, surge muito mais da relação como real, que do contato com o real. Relacionar-se portanto, com que quer que seja, produz um aquilo que chamamos de experiência, já que “relação é a vinculação de alguma ordem entre pessoas, fatos ou coisas.” ( Google)
Usando e adaptando o exemplo apresentado por Carmem Cavaco, citando a “atividade” como sendo uma compreensão experiencial, podemos entender melhor o sentido da experiência significativa: “a aprendizagem dos enunciados não é equivalente à aprendizagem da atividade, uma pessoa pode explicar todos os enunciados para nadar corretamente mas não saber nadar”. (Charlot, 2002, p. 80 Citada por  Cavaco.).
Percebemos então, que a ausência de relação com a realidade não propicia experiência significativa, ainda que os anos tenham passado . Questionando essa associação automática entre a idade e a experiência, Walter Benjamin declarou: “Em nossa luta por responsabilidade, nós lutamos contra alguém que é mascarado. A máscara do “adulto” é chamada “experiência”. Ela é sem expressão, impenetrável e sempre a mesma. O “adulto” sempre já experienciou tudo: a juventude, os ideais, as esperanças e as mulheres.” ( Citado por João Gabriel Lima e Luis Antonio Baptista)
Nem a velhice, ( ou o passar os anos), nem muito menos a juventude, são elementos produtores de experiência. Os contatos e relações, em maiores ou menores níveis, com objetos e situações, são provavelmente, aquilo que causa  de fato uma experiência significativa.  
No poema Instantes, atribuído a Jorge Luís Borges, há uma declaração de frustração, por ter vivido e não experimentado diversas situações da vida:

... Se eu pudesse voltar a viver, começaria a andar descalço no
começo da primavera e continuaria assim até o fim do
outono. Daria mais voltas na minha rua, contemplaria mais
amanheceres e brincaria com mais crianças, se tivesse outra
vida pela frente. Mas, já viram, tenho 85 anos e sei que
estou morrendo.


Assim, a questão sobre experiência, não é saber quem viveu mais, mas quem experimentou mais, interagiu mais, refletiu mais, observou mais, se relacionou mais.
 E mais que isso, a questão relevante é: o que foi experimentado? Afinal, a experiência surge como resultado de relações específicas com o objeto ou situação experimentada.  Assim, como firma  Jorge  Bondía, “A experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca. A cada dia se passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece.”

Epistemologia da Prática.

O termo epistemologia, deriva do termo grego Epsteme, “Conhecimento real e verdadeiro, de caráter científico, que se opõe a opiniões insensatas e sem fundamento, muito empregado na filosofia grega ou no platonismo”
Silas Borges Monteiro, citando Heidegger nos informa : O verbo que lhe corresponde
é epistasthai, colocar-se diante de alguma coisa, ali permanecer e deparar-se, a fim de que ela se mostre em sua visão. Epistasis significa também permanecer diante de algo, dar atenção a alguma coisa.
Se unirmos  os conceitos semântico e filológico, teríamos então a interpretação do termo epistemologia como sendo: A aquisição do conhecimento a partir da atenta observação. Esta atenta observação, nos remete ao contato ou relação com o real que Barbotin e Freire defendem como elementos  propiciadores da experiência.  Ou seja, epistemologia,  se aproxima do conceito de experiência que tratamos anteriormente, uma experiência que produz resultados significativos, não superficiais, científicos e não somente empíricos.
Tardif, citado ainda por Silas Borges Monteiro, conceitua Epistemologia da prática como sendo “o estudo do conjunto de saberes utilizados realmente pelos profissionais em seu espaço de trabalho cotidiano para desempenhar todas as suas tarefas”
Vale ressaltar que essa observação, estudo, busca pelo conhecimento, enfim, essa epistemologia, deve servir para prover uma prática, uma ação, um resultado. Afinal, espera-se da  experiência ou da ciência, resultados:  a produção de uma ciência da prática, no caso da Educação, que tenha sentido na transformação social.” (Cavaco)
Sobre a relação  entre experiência e Epistemologia da prática, é importante refletir sobre  o que propõe Paulo Freire em sua obra: Virtudes do Educador, como uma maneira direcionada de conduzir um comportamento profissional coerente: “Outra virtude é a de viver intensamente a relação profunda entre a prática e a teoria, não como superposição, mas como unidade contraditória. Viver esta relação de tal maneira que a prática não possa prescindir da teoria. Temos que pensar a prática para, teoricamente, melhorar a prática... Não há como negar o papel fundamental da teoria, entretanto, a teoria deixa de ter qualquer repercussão se não existir uma prática que a motive.” ( Freire)
Epistemologia sendo então a busca pelo conhecimento, a observação crítica, o método apurado, é portanto, a relação experiencial com o objeto do estudo, com aquilo que se quer demonstrar, com aquilo que se quer apontar.  “A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço.” ( Lorrosa)
Assim, entendemos a relação próxima,  dos termos: Experiência e Epistemologia da prática. Pois,  do ponto de vista etimológico e semântico, os conceitos se aproximam quase familiarmente. Numa tentativa, talvez didática e simplista, mas próxima de uma elucidação sobre a relação entre os termos, poderíamos apresentar, e assim concluir nossa reflexão, dizendo que Epistemologia da Prática é a Experiência da Experiência.
Sendo nesta declaração  o primeiro termo referindo-se a epistemologia, a avaliação, a prova, a verificação em busca de respostas. E o segundo termo experiência, referindo-se à  prática, a relação com o real, o “pôr a mão na massa”, que propicia uma experiência significativa.




Referências:

1.     Experiência: um termo chave para a Psicologia,p.9,Mauro Martins Amatuzzi      Pontifícia Universidade Católica de Campinas Brasil 
2.     Educação como prática da liberdade, Paulo Freire 1967,. P.42, Ed. Paz  e terra.
3.     http://catalisando.com/homepage/lentilha.htm ( Acessado em 03 de setembro de 2017)
4.     https://www.dicio.com.br/episteme/ ( Acessado em 03 de setembro de 2017)
5.     Considerações acerca do conceito de Epistemologia da Prática, Silas Borges Monteiro.  pp. 61-64
6.     Experiência e formação experiencial: a especificidade dos adquiridos experienciais, Carmem Cavaco, p. 222 – 226
7.     Virtudes do Educador,  Paulo Freire, 1982,  p. 6, Ed. Vereda
8.     Notas sobre a experiência e o saber de experiência* Revista Brasileira de Educação P. 21, Jorge  Larrosa Bondia, Traduzido por João Wanderley Geraldi

9.     ITINERÁRIO DO CONCEITO DE EXPERIÊNCIA NA OBRA DE WALTER BENJAMIN, Princípios , Revista de filosofia, p.p. 452-453 João Gabriel Lima e Luis Antonio Baptista.

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